Raro comum

Bateu a porta mais uma vez, de praxe até. Poupasse-o de mais um episódio no mambembe espetáculo de despedida, já que bem o sabia de antemão. Hesitou uma vez mais, só pra ponderar, desta feita, impossível reconciliação. No campo do inimigo, ódio intumescido atravessando o coração tal qual lança de campanha, ela todo rancores e razão – irracional? Não, passional.

Atravessou a rua sem olhar pra trás. Deixando os motivos (quem se lembrava a essa altura?) e os pertences e as promessas de dias melhores por vir.

- Pra casa de Mamãe é que não vou. – pensava alto, falando sozinha, sentada no meio-fio.

No apartamento, às voltas com o isqueiro de pedra gasta, dificuldade de acender o único apaziguador de ânimos. Carlinhos na colônia de férias – graças.

Farto de toda situação, exageros à parte, não perdoaria uma vez mais seus caprichos, danem-se as feminices e mensais tensões. Fora da fronteira hospitaleira das janelas do condomínio, o mundo a pegar fogo. Ela veria só.

A mesa de jantar posta, porta-retratos, tenazes que o prendem, a poltrona o trono das indagações sobre certo ou errado – quem se importa?

Estranha o estrondo peculiar à cidade, mas sem se intimidar jamais. Dar o braço a torcer: a mais remota das possibilidades. Melhor passar o tempo observando as vitrines, ainda cedo, lojas abertas. Saíra tão afoita, “esbaforida” diria ele, que só teve tempo de carteira trazer. Menos mal. Desde o casamento, alertada por mamãe – sogra não presta – que bom marido não bebe dessa maneira, mas o que se discutir, assuntos de cama e de coração, ao casal pertencem.

A paz de tempos em tempos, breves períodos de bonança, monções matrimoniais. Atribuídas, talvez, a si próprio, mea-culpa, a mão sempre passada pela cabeça, vistas grossas. Tadinha, de problemas até aqui. Fama conhecida e atestada durante namoro, antes de casar, enganado nunca foi. O tempo passou e a melhora afirmada pelos doutores veio em doses homeopáticas, mas não suficiente. Os rompantes cada vez piores. Valha-me Deus! Dedicada e afetuosa; quando atacada, o cão na terra e o marido no inferno. Conforto mesmo, o escritório e os havanos.

Um vestido lindo. As luzes e os letreiros de néon emitindo gases em névoa no ar, o sonho cor-de-rosa, a cabeça flutuando junto dos jingles e da variedade das gôndolas de conveniência – shopping center, o paraíso terreno. Cheque ou cartão?

Passeia por entre os corredores, brinca de esconde-esconde na multidão de elevadores, criança de novo. Livrai-me de todo o mal, amém. Durante os surtos, se enche da certeza de que, ele tornar a vê-la, sonho impossível. Não a procure não pra ver só.

Chupa sorvetes, inveja a piscina de bolas. Poder de afundar e enterrar-se de morte morrida, ou matada, o funeral dos horrores, insanidade casamenteira – àquela altura, ficar pra titia? - que a levou aos trancos e barrancos até o dia de hoje. O nascimento de Carlinhos seria pra sanar, ledo engano. Só o sanatório o faria, a família de acordo, Carlos um herói. Por traçado de luz, veio à tona o menino sem problemas.

Os números digitais da praça em sincronia com o cuco da sala. A noite como lençol negro, estendendo-se a perder de vista.

- E Mamãe, tá bem? – Carlinhos por telefone, entre o lanche noturno e atividades.

- Tá sim filho.

Lua empinada alta no céu, brilhai e iluminai os caminhos dos desafortunados, amém. A brasa lenta, queimadura profunda, incandescente, um torno apertando a saudade. Carlos termina o charuto e prepara mais um drinque. Confere nos dedos, matematicamente, a probabilidade muito provável. Ao se virar, de cara com Lúcia, cheia de bolsas e refeita.

Tomam banho juntos, calmantes e beijo na boca.

- Vem pra cama bonequinha, vem.

Douglas Evangelista
Enviado por Douglas Evangelista em 08/09/2005
Código do texto: T48842