Pro outro contar pra alguém

Dois, três, quatro, quatro e meio. O tempo se contorce no relógio de criado-mudo. O chão parece estar bem mais fundo do que o costume pede. Meio tonto, sem prestar muita atenção por onde ando, piso. É relva. Não, é madeira seca, envelhecida e desgastada, parece relva. Dedo por dedo, como em exercícios teatrais, movo meu corpo a partir dos movimentos cambaleantes que levo. Descontraído e perplexo diante das paredes do quarto, lembro-me que tenho que ir. Desabotôo a camisa maculada de sangue, sem saber de quem é, e continuo a caminhar em direção à janela entreaberta. Ao ver um revólver, calibre 38, deitado sobre uma colcha de retalhos, faço votos para que não seja meu. Meus olhos doem e mal consigo ver o incômodo que me causa os barulhos cacofônicos que vem da rua. É de metal. É de metal. É de madeira um pedaço. É a mesa de centro, que tropeço e caio. Corro com os cabelos revoltos pelo ar e soco sem dó com a cabeça no chão. O modo como o som provoca a atenção dispensada do tempo de cair me faz fazer um feito. Feito de sonhos. Feito homem. Homem caído e dolorido no que acha ser chão.Nosso maior medo é perder a superficialidade. Se algum dia descobrirmos porque os pássaros cantam, o feitiço que nos faz amá-los acaba. Mas de qualquer forma, me levanto e continuo a andar em direção, sempre, à janela. Rodopio mais algumas vezes, pra não perder o vezo, enquanto enxugo as lágrimas de sangue que caem do meu rosto. Reflexos da queda. Curto mais um pouco o pano molhado e me sento pra descansar. A caminhada parece ser adoravelmente longa. Descubro embaixo das roupas masculinas e de mulher que estão misturadas, um pedaço de papel. Parece ter guardado em si letras, palavras, alguém que tenha escrito pra outro alguém. Seria carta de amor, de perda, de amigo, de despedida, de bom dia, de cobrança... alguma mão com traços caligráficos particulares teria feito o mesmo. A forma como as palavras se juntam, daqui de longe, me faz querer ver mais. Um segredo. Era um segredo que nunca ninguém poderia revelar. Quem sabe... junto forças no que me sobra e corro, vendo lentamente minha silhueta se refletir na vidraça da janela. Atravesso o vão aberto na parede e ao cair, no caminho, percebo que deveria estar no quinto andar... agora no quarto... agora no terceiro... segundo... primeiro... na entrada... Cinco, seis, sete, sete e meio, oito. Acordo. Levanto-me ferozmente por não ter terminado o sonho e vou até o banheiro lavar o rosto. É assim, pouco se dorme, muito se sonha e uma escrita se faz.

Fernando de Camp
Enviado por Fernando de Camp em 21/02/2005
Reeditado em 28/02/2005
Código do texto: T4887