Conversa de Pierrot com Arlequim

Pierrot: Arlequim, essa noite tive um sonho... desses que se sonha... flores densas e desbotadas desciam do céu com toda a brutalidade, cobriam a relva pictórica como a alegria de um abraço. Dele, se avistava o desenho mais lindo e lúdico. Fitou-me como quem espera uma paixão pra vida inteira, um sentimento de carinho e dor que se misturavam. Contudo, a tristeza da incerteza e o calor que vazava do peito me abateram como se quisesse beijar os seus olhos. Fiz sonhar em mim mesmo de que aquele era o meu amor. E enquanto me ocupava com meus devaneios ela se foi. Despertei no banco da praça com meu ar pálido e distraído.

Arlequim: Hahaha... não era sonho Pierrot pueril. Eu também a vi... chamava-se Colombina. Loira como o bordado do sol que rasga o céu e branca que até mesmo o mais belo alvor se esconderia diante de tal beleza e delicadeza.

Pierrot: Me lamentei depois, mas ainda a espero... tenho esperanças de ainda a ver, pra lhe contar todas as minhas aventuras e decepções. Olhe Arlequim, você sabe o que é ter e mais tarde perder a quem se ama. Você sabe o que é ver quem se quer partir, mas ainda assim supera a dor com outro amor. Já me cansei de casos vazios, de lamentos aparentemente verdadeiros, da dor que emana da flor despedaçada, pois sei que tenho pressa e que de tantas paixões não é possível que não sobre nem uma pr'a mim.

Arlequim: Vamos Pierrot, você bem sabe que eu não acredito em suposições, em quimeras. O passado é concreto, certo e inquebrantável, o futuro é vago, não há como distinguir ou programar sonhos, todos são de confete... por isso, sabe bem, o presente é a minha casa, aqui fico seguro para beber em meus pensamentos, aqui as coisas acontecem com a brutalidade de sempre, mas ainda há tempo de mudar, de se esquivar...

Pierrot: Mas porque se esquivar de tal beleza? Colombina, como você diz, era o crepúsculo do dia, até o mais fausto Rei se curvaria debaixo dos seus olhos. O desejo de beija-la era inexorável e sentia que ela também o desejava.

Arlequim: E porque não o fez?

Pierrot: Não poderia, era tão imaculada que seria para mim quase uma heresia.

Arlequim: Pois eu o fiz.

Pierrot: Como? A dor que bebes do meu peito já não lhe basta? Ainda assim quer me confrontar com a sua lascívia? Como se atreve?

Arlequim: Pierrot, figura patética, se acalme. Quer que lhe conte como foi?

Pierrot: A sua petulância e luxúria me causam náuseas.

Arlequim: Pois bem, assim se deu o acontecido.

Na mesma noite em que a viste

A encontrei pouco antes

Debaixo de um orvalho

Entre as flores do campo

Nos olhamos como dois pássaros

Mas sem asas

E dei-lhe o que você deseja tanto

Passado o tempo com ajuda do vento

Colombina me desdenhou

Enquanto perdia sangue

E sentia ainda o gosto dos seus lábios

Correu de encontro ao nevoeiro

Indo mais tarde conhecer

Um Pierrot brasileiro

Pierrot: Seu conto é tão abstrato como meu sonho, Arlequim apaixonado.

Arlequim: Sim, mas a paixão passa com o tempo, desse sentimento eu entendo. O amor que tanto pregas é sofrido e indulgente, a paixão é remontada com os pedaços de sensações, boas sensações. Com o tempo se transforma em lubricidade, prazer, são evocações para que o beijo doce de Colombina seja o único a não esquecer.

Pierrot: O amor verdadeiro é o pior dos golpes, por isso o deixam para o final.

Arlequim: O amor que você diz ser verdadeiro não existe. São todos sonhos...

Pierrot: Mas é tão verdadeiro sonhar!

Arlequim: Esse mesmo amor singelo e puro que te faz enveredar pelos devaneios do pensamento lhe dando carícias é o mesmo que te apunhá-la e sangra pelas costas. O vulto suntuoso desse amor cobre de esperanças e riquezas a sombra da lua que te banha. Teu amor é de brinquedo.

Pierrot: E de brinquedo se fazem os beijos e agrados que tanto tens com muitas em uma noite, mas que nada lhe proporcionam ao amanhecer do outro dia. Não sou tão simples assim Arlequim, meus desejos podem ser inalcançáveis, mas ao menos os tenho. Esses sentimentos que ainda não entende só mostram como somos diferentes.

Arlequim: Levando em conta a sinceridade que se mistura com a ingenuidade de uma criança, posso lhe confidenciar que você é um poeta. Vive porque quer achar um modo de viver. Mas há uma gota de sangue em cada poema que você escreve. Esquece Pierrot ilusório, leva a vida de cântico, assim como eu. De tristeza romântica você só enche o mundo com o som de um Pierrot tristonho... e depois?

Pierrot: Qual tristeza não é senão romântica? As outras são considerações sobre assuntos de velhos, recordações que são muitas vezes inventadas no imaginário desses irrefreáveis bobos.

Arlequim: Concordo com suas considerações. Bobos são aqueles que inventam no seu imaginário algo que não fizeram, acreditando, mais tarde, com a insistência da mentira que tudo que diz é verdade, que realmente aconteceu. Pois bem, quem seria este bobo Pierrot?

Pierrot: Então, somos todos bobos, Arlequim sem coração. Em que lugar guarda os seus sonhos? Os meus, os guardo onde posso pegá-los.

Construí então um nada

E forrei com perfume amadeirado

O mesmo que você usava

Que era pr'a me confundir

E sentir um pouco de você

Se a escolha é sua

Espera o verão passar

Que o tempo que sobrar

A gente põe na mão

Feito areia

E deixa escorrer pelos dedos

Arlequim: Eterno sonhador...

Fiz então os olhos perfeitos

De um corpo que um dia

Nunca sonhei

E tinha o beijo mais doce

Que minha boca sorrindo

Fez questão de lembrar

Arlequim: Enfim, meu caro amigo, Arlequim sempre foi um Arlequim e Pierrot será sempre um sonhador que se esconde no seu paraíso onírico acreditando que amor e dor deveriam ser a mesma palavra.

E Pierrot chorou, ao lhe dizerem que era pra esquecer e começar tudo de novo... mais uma chamada pro tecido desbotado, que balançava pra lá e pra cá, pra lá e pra cá...

Fernando de Camp
Enviado por Fernando de Camp em 22/02/2005
Código do texto: T4899