Som nas caixas

- Dizem que essa balada é a melhor da cidade.

- Bom, se não for a melhor em termos de seleção musical ou frequência, sem dúvida é de qualidade de som. Já dava pra ouvir a música da outra esquina...

Ela riu, divertindo-se com a observação dele. A fila andou rápido e sem demora estavam lá dentro, no claro-escuro das instantâneas luzes, cujos flashes revelavam as pessoas como robôs em seus movimentos bruscos.

O som eletrônico entrava em seus ouvidos como flechas. Nos ouvidos dele, particularmente, tinham curare nas pontas. Moviam-se mecanicamente, meio dançando, meio tentando se locomover naquele tsunami de gente cheia de glitter, álcool e perfume, as do sexo feminino em arremedos de saias e sapatos com alturas estratosféricas.

- Como essas moças conseguem andar? – ele perguntou. – Quê? - ela respondeu, e continuou serpenteando, andando-dançando em direção ao bar. Ele engoliu a pergunta.

Ela pediu um gim-tônica, ele uma tônica com gelo. Ela sorriu, piscando e cintilando como uma estrela, e ele lamentou não poder ver o brilho do seu belo olhar.

- Está gostando? – ela perguntou. – Quê? – ele respondeu. Ela encostou a boca em seu ouvido: - ESTÁ GOSTANDOOOO?

Ele tentou enxergar o local onde os olhos dela deveriam estar e, com uma expressão de enfado divertida da qual só pôde ser visto um flash, respondeu, também encostando a boca no (perfumado) ouvido dela:

- NÃÃÃOOO!

Pegou a mão da moça, puxou-a com delicadeza mas firmemente e foram se encaminhando para a saída, esbarrando em dezenas de corpos suados, absolutamente indiferentes à sua pressa, que surgiam e sumiam movendo-se todos no mesmo ritmo: putz-putz-putz...

Na rua, o eco da música eletrônica ainda fazia cócegas em seus ouvidos, mas a fraca luz dos postes oferecia melhor visão que os relâmpagos controlados da pista de dança. Consternado, ele parou bem em frente a ela - só que agora podia ver seus olhos (arregalados, mas belos).

- Desculpa. Eu sei que você queria ir à balada, mas o DJ exagerou. Aquelas batidas eletrônicas foram direto da caixa de som para a minha caixa craniana, sem escalas, e eu não estava conseguindo ouvir nem meus próprios pensamentos.

- Tudo bem – ela disse. – O que você quer fazer, então?

Pegou ambas as mãos da moça:

- Vamos jantar num lugar silencioso, à luz de velas? Quero falar uma coisa mas gostaria que você ouvisse... sem que eu tenha que gritar!

O sorriso dela foi suficientemente assertivo. Caminharam de mãos dadas à procura de um restaurante, ouvindo apenas as batidas graves e ritmadas que vinham de suas caixas torácicas.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Som na caixa

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