338-A BATALHA DO MONTE TABOR-Biblico

Inspirado em passagem do Livro de Ester

Era uma mulher simples, de feições suaves. A cabeça, sempre coberta quando recebia os irmãos em fé, escondia a longa cabeleira de ondas negras. Não os acolhia em sua modesta morada e sim sob o dossel de folhas de um grupo de tamareiras. Gostava especialmente de sentar-se sob uma palmeira frondosa, que, muito a propósito, era conhecida como “a palmeira de Débora”. Dali, numa elevada posição no monte de Efraim, nas proximidades de Betel, a profetisa e conselheira podia ver, ao longe, a poeira levantada pelas comitivas e caravanas dos visitantes e consulentes, que acorriam de todas os locais habitados pelos filhos de Israel, para ouvi-la, resolvendo os litígios, agradecer-lhe os conselhos e prestar-lhe homenagens.

Sendo uma mulher de notória sabedoria, vivia modestamente com seu marido Lapidote, no alto do monte, de onde divisava, olhando diretamente para o leste, o sempre verde vale do Rio Jordão. Para o norte, estava o monte Tabor, cujo cume confundia-se com o céu. Betel era um lugar santo, pois fora ali que Deus aparecera a Abraão e a Jacó. Ao primeiro testara a fé, ordenando o sacrifício do próprio filho, e ao segundo mostrara o trono de Jeová, que lhe aparecera em sonho, no topo de uma escadaria que ligava céu e terra.

Debaixo da palmeira preferida, Débora ouvia com paciência os reclamantes, e resolvia os litígios que se lhe eram apresentados. Também ouvia as queixas, que chegavam de todas as tribos estabelecidas na Terra Prometida, a respeito das incursões e invasões de filisteus, cananeus, madianitas e outros povos vizinhos, inconformados com a tomada de posse de suas terras pelos Filhos de Israel.

As tribos, espalhadas por toda Canaã, convivendo pacificamente com as populações locais ou impondo-se àquelas não tão mansas, se viam em dificuldades toda vez que um inimigo comum as atacava. Não tinham um governo central. Cada uma das doze tribos era independente, mas o espírito de solidariedade e fraternidade fazia com que reagissem em comum ante o inimigo que ameaçasse qualquer cidade ou região ocupadas pelos hebreus. Depois de vagarem durante quarenta anos no deserto, os Filhos de Israel reocupavam a terra prometida por Javé a Moisés e Josué.

Moisés morrera antes que os israelitas entrassem na terra prometida. Josué os levara, através de importantes batalhas, à reconquista de Canaã. Mas os inimigos não desistiam. De norte a sul, e também pelo leste, reis, generais, aventureiros do deserto, em incursões para pilhagens, roubos, prisões e mortes, pareciam unidos contra os novos habitantes da Cananéia.

Inúmeros heróis levaram a vitória aos judeus contra os exércitos inimigos. Corriam histórias e histórias. Aod teria matado o rei de Moab e destruído o exército moabita, de mais de dez mil homens. Samgar matou seiscentos filisteus, usando apenas uma correia larga de arado.

Naqueles tempos de inquietação, Jabin, um rei de Canaã, era causa de muitas queixas dos israelitas. O general do exército cananeu, por nome Sisara, era particularmente cruel para com os inimigos. Seu exército regular contava com cerca de cinco mil guerreiros. Dois mil homens, armados de arco-e-flecha e lanças, seguiam novecentos carros de combate. Era a arma de guerra mais terrível já concebida até então. As pequenas carroças de duas rodas, puxadas por rápidos cavalos árabes, levavam, além do guia, dois flecheiros. Eram guarnecidas com lâminas de fio afiado, colocadas firmemente nas laterais, distantes do solo o suficiente para ceifar ao meio um homem. Faziam uma devastação entre os inimigos, cujos grupos de combate eram desorganizados e mal municiados.

O rei Jabin e seu general sanguinário fustigavam os hebreus e os mantinham sob opressão e ameaças por mais de vinte anos. Não surgira, durante essa época terrível, nenhum herói ou líder que comandasse os hebreus. A situação se tornava cada vez pior.

— Oh preclara senhora e irmã! Aqui estamos para que nos oriente como devemos proceder ante tão poderoso e cruel inimigo. Não temos defesas, nem armas. Nossos companheiros que vão à luta são impiedosamente mortos. Nossas vilas queimam desde as praias de Sharon até o monte Tabor e o mar da Galiléia.

Reunidos sob a palmeira, os delegados das tribos de Áster, Zabulão, Issacar, Manassés e Neftali levavam as notícias da devastação causada pelo rei Jabin aos estabelecimentos dos colonos israelitas.

Débora, senhora de grande visão e muita coragem, meditava sobre as notícias trazidas de todo o norte. A condição de mulher, sabidamente colocada em lugar inferior pelos hebreus, não a fazia tremer ante qualquer desafio.

— Mandem Barac vir à minha presença. — Ela determinou aos emissários das tribos do norte.

— Barac? Quem é Barac? — Interrogaram entre si os delegados.

— Eu o conheço. - disse Ezec, um deles. — É filho de Abinoem, que habita em Cedes. É muito jovem e não sabe sequer manejar armas.

Apesar da pouca confiança que inspirava aos delegados o nome do convocado por Débora, foram até Abinoem e deram o recado da profetisa. Barac rumou, acompanhado pelo pai e grande comitiva, em direção a Betel. Levavam presentes para agradar a conselheira. Barac tinha apenas quatorze anos e, apesar de ser um menino esperto, nada sabia das artes marciais.

Desprezando as dádivas, Débora falou em voz alta, proclamando ante a assembléia de visitantes:

— O Senhor Deus de Israel fala por minha boca e ordena-te: “Vai e conduz o exército de Israel contra Sisara, general do rei Jabin. A vitória te estará garantida.“

— Débora, Ilustre profetisa, permití-me perguntar-vos: Com que exército meu filho combaterá o terrível general Sisara? — Abinoem não crê na palavra do Senhor, manifestada através de Débora.

— Recrutarás dez mil combatentes das tribos de Neftar e Zabulão, que também te fornecerão armas e víveres para a expedição contra Sisara. — Débora prevê a guerra e revela-se também estrategista. — A batalha final será nas faldas do Monte Tabor, no local da torrente de Cison. Ali, derrotarás o poderoso exército, te apossarás de todas as armas e todos os guerreiros inimigos serão teus prisioneiros.

Barac, entretanto, mostra-se receoso. Mas não se intimida em convocar também a profetisa para participar da guerra contra Sisara. E diz:

— Se vieres comigo, ponderosa senhora, irei. Se não quiseres vir comigo, não irei.

A profetisa não titubeia em concordar com o jovem:

— Está bem, irei contigo. Mas, por duvidares do poder do Senhor Deus de Israel, não te será atribuída a vitória sobre Sisara. O General será entregue às mãos de uma mulher.

Reuniram-se, pois, as forças de Zabulão e Neftali, que somavam mais de dez mil guerreiros, para o confronto com o exército de Sisara. O comando de Barac, que se aconselhava todas as tardes com Débora, era decidido e efetivo. Mostrava-se um líder exigente, ao mesmo tempo em que conquistava a amizade de seus comandados. Muitos dos convocados haviam perdido esposa, filhos e filhas, os bens e a dignidade, vítimas de Sisara e seus asseclas A movimentação dos homens sob seu comando se fazia com determinação e todos se mostravam ansiosos para o confronto final..

O general Sisara tinha espiões em toda a Canaã ocupada pelos israelitas. Ao ter notícia da formidável empreitada dos israelitas, reorganizou seu exército. Dobrou o número de soldados, constituindo uma tropa formidável de mais de dez mil homens, milhares de “carros da morte” e treinando flecheiros, lanceiros e atiradores de funda. Era uma máquina de guerra espetacular, com homens bem treinados e equipamentos bem conservados.

— Descanse, Majestade. — Sisara tranqüilizava o rei Jabin — O bando de israelitas não vai dar nem para começarmos a luta. Depois da vitória, retomaremos a posse de toda a região ao redor do Mar da Galiléia.

— Desconfio desses adoradores de um deus só. Alguma trama perigosa está por trás desse exército de incompetentes.— Jabin era precavido mas se deixava influenciar pela sede de poder do general.

Na marcha para o Monte Tabor, Barac e seus comandados atravessaram as terras governadas por Haber Cineu, importante israelita, descendente direto de Hobab, que, por sua vez, fora parente próximo de Moisés. Haber Cineu há muito tempo tinha se separado de seus irmãos da família de Cineu. Era um homem indômito, independente, justo e temente ao Senhor Deus de Israel. Dono de rebanho numeroso, suas tendas se estendiam pelo vale do Jordão, região indefesa aos ataques dos inimigos. Por isso, Haber aceitara a paz imposta pelo rei Jabin.

— Desejo falar com Haber Cineu e sua mulher. — Débora falou com o marido, Lapidote, o qual imediatamente providenciou o encontro.

— Estou ciente do acordo de paz entre você e o rei Jabin. Por isso, não nos fornece nem homens nem víveres. Mas pode ajudar nossas forças, sob o comando de Barac, conforme determinou o Senhor Deus de Israel.

— Como poderei ajudá-los, sem trair o acordo com o rei Jabin? Ele é implacável e, se souber que os ajudo, certamente enviará seu exército contra mim — e me destruirá.

— Você não será envolvido. Sua mulher Jael providenciará tudo. — E assim tendo dito, apartou-se com Jael, no fundo da tenda.

A conversa que tiveram nunca a ninguém jamais foi revelada.

Os israelitas, chegando do oeste, posicionaram-se no Monte Tabor. Milhares de homens seguiam animados pela fé e confiança no Senhor Deus de Israel. Não estavam bem treinados, nem todos estavam armados. A impressionante massa humana não amedrontava os soldados do general cananeu, dispostos em largas frentes de combate, na planície a oeste do monte.

Barac, jovem e sem experiência em confrontos com o inimigo, permanecia, contudo, impávido, aconselhado por Débora. Ela determinava tudo, pois nas suas visões e sonhos, sabia exatamente onde atacar e onde recuar.

— O tempo é nosso grande aliado. Vamos esperar o sinal do Senhor para descermos o monte e confrontar o inimigo. — Mais do que conselheira, era uma estrategista, e todos a obedeciam.

A força do exército de Sisara residia nos temíveis carros com lâminas e no intensivo treino de arqueiros. Aguardava, pois, a descida dos israelitas para a planície, quando, no meio da tarde, uma ameaçadora nuvem pairou sobre a planície, transformando o dia em noite. A tormenta constituiu-se numa verdadeira tromba d’água sobre a planície e parte do monte, poupando exatamente a região onde Barac e seus comandados aguardavam a hora do combate.

— Eis o sinal do Senhor. — Exclamou Débora. — Vamos descer agora e derrotar o exército de Sisara.

A planície transformou-se num lamaçal imenso, onde os pesados carros de guerra atolavam-se, perdendo todo o poder de combate. Os arqueiros não conseguiam atingir os homens de Barac, pois a chuva desviava as flechas. Fustigados pela chuva, empacados com seus carros, os arqueiros sem visão, os cananeus perderam toda a iniciativa e foram facilmente engolfados pela onda humana em que se constituía o exército dos israelitas.

Mesmo assim, o combate foi encarniçado, até o momento em que o general, vendo o desastre da derrota, fugiu, abandonando seus comandados, deixando-os à própria sorte. Ao saberem da fuga do chefe, houve a debandada geral dos cananeus. Os israelitas não costumavam fazer prisioneiros dos inimigos derrotados. A fuga era o maior opróbrio. Um exército desmoralizado, desmantelado, era a desgraça de seus comandantes.

Haber Cineu, preocupado com o encontro das forças inimigas, postara-se ao sul do Monte Tabor, em uma elevação onde presenciara a batalha. Viu quando os israelitas acossaram o inimigo até a margem do Rio Jordão, onde milhares de fugitivos pereceram ao tentar atravessar o rio, tornado caudaloso e bravio em função da tormenta que se abatera na planície. Os poucos sobreviventes que chegaram à margem oposta perderam-se pelo deserto.

Sisara sabia que, derrotado, jamais conseguiria reestabelecer seu prestígio junto ao rei Jabin. Ainda assim, procurou refúgio com Haber Cineu, pois sabia da neutralidade do israelita, que vivia em paz tanto com seus irmãos de raça quanto com o rei Jabin.

Estava, pois, Jael, esposa de Haber Cineu, e suas escravas, à porta da tenda, quando viu a aproximação de Sisara. Saindo ao seu encontro, convidou-o a entrar na tenda.

— Entra, meu senhor, e não temas. Haber não tardará em voltar. — Ofereceu-lhe um manto, com o qual o fugitivo se cobriu.

— Tenho muita sede. Peço-te que me dês água e algum alimento. — Sisara tremia. Sentia medo, frio, fome e sede.

Jael, sabedora da chegada do general em fuga, conforme lhe havia dito Débora, abriu um odre de leite, e serviu a Sisara. Algumas gotas do poderoso elixir de terebinto e fel de papoula haviam sido misturadas por ela ao leite que o general bebeu com sofreguidão. Deu-lhe pão e tâmaras. O guerreiro deitou-se e cobriu-se. Antes de adormecer, pediu à gentil mulher que o abrigava:

— Coloca-te à porta da tenda e não reveles minha presença.Se alguém aparecer, mesmo que seja soldado ou oficial do meu exército, e perguntar por mim, dize que aqui dentro não está ninguém. — Isto dito, caiu num profundo sono.

Obedecendo ao que lhe fora ordenado por Débora, Jael toma um comprido prego e tosco martelo e entra na tenda onde Sisara dorme. Com determinação e em gestos estudados, os olhos fixos em lugar algum, a mulher de Haber Cineu se aproxima do homem extenuado. Coloca o prego sobre a testa e dá, com o martelo, a primeira pancada.

Barac viu quando Sisara, tendo saltado de seu carro de comando, fugiu rumo ao sul. Partiu em perseguição do fugitivo solitário. Foi quando encontrou com Haber Cineu, que, interceptando-o com o propósito de retardar a perseguição, convidou:

— Peço-lhe que venha repousar em minha casa, onde mandarei servir vinho e leite, pão, mel e outras iguarias.

A Barac juntaram-se Débora e Lapidote e uma pequena guarda. Juntos desceram do monte e foram até a casa do ilustre irmão de raça.

Ao longe se avistavam as centenas de tendas ocupadas por Haber Cineu e sua família. Os rebanhos pastavam pela planície verdejante. Homens a pé e alguns montados em jumentos vigiavam o gado nutrido. A visão da prosperidade da casa do patrício impressionou os convidados.

Ao se aproximarem da tenda maior e mais rica, que se destacava entre as outras, foram recebidos por Jael, que se dirige especialmente a Barac:

— Vem comigo. Eu te mostrarei o homem que procuras.

Barac acompanha a mulher. Entrando com ela na tenda, o chefe vitorioso vê o fugitivo: deitado, coberto por espessa manta, a cabeça ensangüentada. Ajoelha-se e, aterrorizado, constata o feito de Jael: usando o martelo, que jazia no chão, cravara o prego à testa do homem, até que a fina ponta, atravessando o cérebro, entrou pela almofada sobre a qual repousava a cabeça do general.

ANTONIO ROQUE GOBBO

CONTO 338 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/07/2014
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