ROSALVO

Rosalvo tinha 47 anos e ainda morava com seus pais. Sua vida , até aquele momento, resumira-se basicamente em caminhar do quarto à sala e da sala à cozinha e desta, ao banheiro. Saia quando a necessidade exigia ou quando tinha compromissos absolutamente inadiáveis. Jamais tivera um emprego na vida. Jamais tivera uma namorada em toda sua vida. Era virgem em dezenas de coisas que poderíamos citar. Não gostava de sair de casa, não gostava de falar com pessoas. Não gostava de crianças e convivera durante toda a sua existência com uma hipocondria que fora aprendida de suas tias e de seus pais. Rosalvo era extremamente tímido, introvertido e calado. Era um esquisitão. Penteava os cabelos de modo estranho, sempre para o lado direito e tinha como característica marcante em sua personalidade seus óculos fundo de garrafa em virtude de seu alto grau de miopia. Jamais tinha coragem para realizar qualquer tarefa, estava sempre com preguiça ou vendo televisão. Seu maior medo era que os outros pensassem que ele era bicha; algo que poderia até nos remeter às ideias de Bukowski e Kerouac que disseram por aí em algum lugar que todo homem tem medo de se tornar bicha; entretanto tal digressão nos desviaria do assunto principal que é contar a estória deste sujeito tão peculiar chamado Rosalvo. Pois bem, o rapaz detestava isso e exatamente por ele detestar ser chamado de bicha é que algumas pessoas mais próximas que o conheciam ás vezes faziam insinuações a respeito disso apenas para deixá-lo nervoso. Na verdade Rosalvo não era gay (ou pelo menos pensava que não era), mas também não era o que se pode chamar de um heterossexual convicto. Rosalvo era estranho. Demasiado estranho. Era como se fosse assexuado. Desde criança fora ensinado que sexo era algo pecaminoso, algo sujo, baixo e isto se tornara um tema difícil em sua vida. Seus pais eram religiosos e simplesmente não sabiam como lidar com a situação, incentivavam-no a ir à igreja e apesar de ele não gostar muito e nem demonstrar inclinação religiosa adquirira os mesmos preceitos morais da religião dos pais e se sentia, assim como muitas pessoas, ameaçado pelo inferno e pela danação eterna a cada momento em que se voltava para o tema sexo. O fato é que os pais de Rosalvo nunca souberam como falar disso com o pobre coitado, sempre evitaram o tema de modo que Rosalvo também achou que deveria evitar isso inexoravelmente. Não posso afirmar com certeza mas talvez isso fosse a causa de algumas das neuroses que Rosalvo tinha consigo quanto ao tema sexo.

O que Rosalvo realmente gostava era de comer bolacha, isso sim ele adorava fazer. Rosalvo também gostava muito de calçar meias, não podia viver dentro de sua casa sem suas meias. O pai que não era tão religioso quanto a mãe de Rosalvo; vivia implicando com ela por achar que o rapaz era afeminado e a mãe (sabe-se muito bem como são as mães) vivia defendendo o rapaz dizendo que ele apenas precisava era de um tempo. Mas quanto tempo? Rosalvo completara 47 anos, mas para sua mãe era como se estivesse completando 15 ou 16. Isso acabava sendo motivo constante de discórdia entre eles ainda que não discutissem o assunto abertamente mas que apenas fizessem acusações ralas e que se prestassem a momices provocativas tênues e bobas; além, é claro de alimentarem desta maneira rancores pífios. Durante muito tempo isso incomodou demasiadamente o pai de Rosalvo. De certo modo o pai de Rosalvo também se sentia um pouco culpado por aquilo tudo por que durante muito tempo não tivera coragem de cobrar o filho para tomar uma atitude na vida. O pai de Rosalvo sentia-se receoso até mesmo de tocar no assunto com alguns parentes mais próximos, aquilo era um tabu para ele e para a família e ele jamais se sentiria a vontade para falar do assunto, muito embora dentro de casa, muitas vezes ele fosse enérgico demais com o filho na tentativa de fazê-lo dar uma virada na vida e tornar-se um homem de verdade. Já desistira de tentar convencê-lo a trabalhar, mas casar... Casar ele ainda acreditava ser possível obstante as barreiras que sua esposa criava no intento de proteger o filho Deus sabe lá de que. Entretanto, tinha isto muito mais como uma esperança do que como uma realidade palpável; era um sonho ver Rosalvo casado e se virando por conta própria, tendo sua própria vida, sua própria família e sendo um homem honrado e trabalhador. Além do mais o pai de Rosalvo repudiava impreterivelmente a ideia de o filho ser homossexual e isto acabava também se tornando um conflito mental e moral para o velho. Casar o filho seria a resposta para todos que acusavam Rosalvo de ser homossexual e isto era como se fosse uma vingança sua particular contra todos aqueles que “ridicularizavam o pobre diabo”.

Já Rosalvo, na maior parte do tempo, não parecia se preocupar muito com nada daquilo que todas as pessoas ao seu redor pensavam desde que não percebesse que estavam fazendo piadinhas de bicha. Tudo que Rosalvo precisava era ter sempre um pacote de bolachas ao seu lado, uma televisão onde pudesse acompanhar suas novelas e um bom par de meias limpas para poder usar toda noite na hora de dormir. Rosalvo tinha dois amigos inseparáveis que pareciam ser as únicas pessoas no mundo que o compreendiam de verdade. Eram amigos de infância que vez ou outra o visitavam, tomavam um chá, jogavam ludo ou dominó com ele e viam um trecho da novela ao seu lado antes de irem embora. Eram esquisitões, assim como Rosalvo, e muita gente maldosa da vizinhança dizia tratar-se de homossexuais enrustidos; ainda que um deles até tivesse arranjado uma namorada certa vez. De qualquer modo os comentários ao longo dos anos fizeram com que, pouco a pouco os amigos de Rosalvo fossem se afastando mas; também em parte porque, apesar de serem esquisitões os amigos de Rosalvo trabalhavam e tinham uma vida social mais ativa se é que se pode entender passeios aos shoppings como sendo uma vida social mais ativa. No momento eles estavam um pouco distantes de Rosalvo e ele se sentia ressentido com isso. Sentia-se abandonado e ás vezes até sentia um pouco de raiva que logo passava quando ele se distraia com a televisão. Aos poucos parecia que a vida ia marginalizando Rosalvo e ele não conseguia compreender muito bem o porquê. Na verdade achava que todos estavam sendo ingratos com ele, sentia-se traído, marginalizado. A mãe de Rosalvo já havia notado aquela mudança em seu humor, o “garoto” vivia sempre irritado e reclamava por qualquer coisa mínima que lhe acontecesse ou que se passasse desfavoravelmente a ele.

Foi quando um amigo do pai de Rosalvo, seu Nogueira, apareceu com “a ideia”. O sujeito conhecia uma senhorita chamada Ana Mafalda da Silva Menezes e Proença, funcionária pública, 52 anos, desquitada e recém-viúva pela segunda vez. Ana estava em depressão e se afundando no álcool e no cigarro depois de seu último relacionamento. Era cunhada do amigo do pai de Rosalvo. Tinha casa própria, um emprego estável, já estava próxima da aposentadoria mas não era possível exigir, depois de todos estes atributos, que fosse bonita. Além do mais era experiente e apenas um pouco mais velha do que Rosalvo. Vinha frequentando clubes de terceira idade e bailes da saudade já sem esperança de reencontrar a felicidade e o amor na vida. E; segundo o que me consta ficou muito contente ao receber a notícia de que havia um solteirão querendo conhece-la. Isso mesmo. Foi exatamente assim que lhe deram a notícia. E a Rosalvo, naturalmente disseram o mesmo. Desta maneira o pai de Rosalvo mancomunado com seu amigo conseguiu criar a princípio um clima mais amistoso para a apresentação dos pretendentes.

Apresentação esta que se deu na casa do próprio Rosalvo já que era dificílimo tirá-lo de dentro de casa. Rosalvo pareceu receptivo logo num primeiro momento e pelo lado de Ana Mafalda não se pode dizer que foi diferente, parecia que o pai de Rosalvo e seu amigo Nogueira haviam realmente preparado muito bem o terreno. Logo estavam todos à mesa para um excelente almoço de domingo e logo depois o pai de Rosalvo imediatamente sugeriu que Rosalvo levasse Ana Mafalda para ver TV com ele. Como Rosalvo não tomava a iniciativa, a mãe do rapaz ligou a TV e praticamente os empurrou para a sala para que “se sentissem mais à vontade”.

Não posso descrever detalhadamente a conversa e esse primeiro encontro que tiveram diante da TV que exibia muito provavelmente a sessão da tarde. Tudo o que se soube é que eles conversaram muito e a senhorita Ana Mafalda pareceu-lhes mais contente quando se despediu para ir embora. Rosalvo, de sua parte, gostou de conversar com a solteirona. Ela era bem humorada e divertida mas, fedia a cigarro e saia para fumar de quinze em quinze minutos. Depois deste dia passaram então a encontrar-se todas as tardes para ver a novela. Sempre era Ana Mafalda quem ia à casa de Rosalvo, ele tinha muita preguiça de sair ou estava gripado. A coisa parecia estar fluindo bem e o pai de Rosalvo logo marcou um encontro entre ambos para um cinema. Rosalvo, a princípio, detestara a ideia porque lhe parecia muito trabalhoso ter de ir ao cinema com Ana Mafalda suportando aquele cheiro de tabaco que emanava constantemente de seus cabelos. Depois do cinema, vieram outros compromissos e, dentro de pouco tempo a senhorita Ana Mafalda tomava Rosalvo como seu namorado oficial (apesar de ainda não terem nem mesmo trocado um beijo de língua). Ana Mafalda procurava ter paciência com o rapaz imaginando que talvez ele ainda pudesse dar um bom marido. Já investira várias vezes, mas diante das consecutivas recusas do rapaz e de seu deplorável estado de hipocondria contentava-se agora no simples gesto de tomar sua mão nas suas e de abraça-lo amigavelmente no momento de ir embora. Desconfiara já a respeito das tendências homossexuais mas nada dissera, pois fora previamente alertada por Nogueira quanto à isso. A mãe de Rosalvo acompanhava tudo a distancia, pois fora impedida pelo pai de Rosalvo de intervir no assunto e rezava todas as noites antes de dormir para que Deus providenciasse tudo.

Então, um dia, em pleno alvoroço e empolgação Ana Mafalda resolveu fazer uma festinha em sua casa. Convidou seus amigos da repartição e alguns chegados mais próximos e preparou tudo para o grande dia. Rosalvo acabou se atrasando um pouco, em virtude do trânsito e dos horários dominicais dos ônibus. Quando chegou à porta de Ana Mafalda foi recepcionado por um sujeito urco com bafo de cachaça que logo riu na cara dele. Obstante, Ana Mafalda ao saber da chegada de Rosalvo foi pessoalmente recepciona-lo exalando o mesmo hálito forte de álcool. Rosalvo não bebia, não gostava de beber, não gostava de animar-se, não gostava de gente que bebia e não gostava de gente muito animada. Rosalvo não gostava de música alta e naquele dia estava resfriado. Durante quatro longas horas Rosalvo sentiu-se martirizado e desconfortável naquele lugar. O fato é que praticamente todos, menos o sujeito que o recepcionara na entrada, estavam sendo muito simpáticos com ele. Simpáticos à maneira deles que, a Rosalvo, podia parecer hostilidade pura. Num dado momento alguém fez uma brincadeira sobre bicha e logo começaram a olhar para Rosalvo que quis enfiar sua cabeça debaixo da terra à maneira das avestruzes. Quando perguntaram a Ana Mafalda sobre sua relação com Rosalvo ela já não soube o que dizer, lançou um olhar torto e embriagado para ele e disse que eram namorados. Alguém lançou no ar a ideia de que se beijassem então para apreciação coletiva e foi neste momento que Rosalvo quase entrou em parafuso. Começou a ficar vermelho e sentir que tudo ao seu redor estava girando, sentia calor, estaria com febre talvez? Ana Mafalda se aproximou passando o braço em seus ombros enquanto todos gritavam “beija, beija, beija”. Rosalvo fechou os olhos e crispou as mãos, não queria mais ver ninguém, não queria mais ouvir ninguém, simplesmente não sabia como agir. Suas mãos estavam trêmulas. Tudo parecia-lhe muito ofensivo, muito escancarado, muito diferente e ele estava sob pressão. Jamais antes, em toda sua vida, lidara com aquele tipo de pressão. Então, num último momento quando Ana Mafalda se aproximava de seu rosto com um bico formado nos lábios ele fugiu. Escapou dela e saiu correndo porta afora. Foi embora. Correu até o ponto e, para sua sorte, no mesmo momento passou um ônibus que o levou para casa.

Depois disso Rosalvo se fechou definitivamente para o mundo. Trancou-se em seu quarto por três dias seguidos e não quis receber absolutamente ninguém. Ignorou completamente a visita de Ana Mafalda no dia seguinte, apesar da tremenda ressaca em que ainda se encontrava. Ignorou a visita de seus amigos esquisitões e as inúmeras súplicas e questionamentos de sua mãe de seu pai. Do lado de fora não se ouvia nem mesmo o ruído da televisão, o que levava todos a imaginaram o que é que estaria Rosalvo fazendo enquanto se mantinha preso em seu quarto. Finalmente depois de três dias Rosalvo finalmente abandonou seu quarto por alguns minutos, foi até o banheiro, depois tomou um copo d’água, não falou com ninguém e voltou para dentro. A mãe de Rosalvo oferecia-lhe comida o tempo todo e dizia ao pai que o garoto apenas precisava esfriar a cabeça e que era preciso que eles fossem compreensivos. O pai começava a achar que a ideia de apresentá-lo à Ana Mafalda talvez não houvesse sido tão boa assim. Mas ninguém sabia dizer ao certo o porquê do comportamento de Rosalvo ter se tornado tão esquivo. O fato é que mais alguns dias foram passando e Rosalvo não saia mais de seu quarto. Todos já estavam ficando preocupados com a situação. Por fim, depois de passados mais quatro dias finalmente resolveram arrombar a porta do quarto. Todos estavam lá, o pai e a mãe de Rosalvo, suas tias, seu Nogueira, os dois amigos esquisitões dele, Ana Mafalda, todos. Usaram um pé de cabra e invadiram o quarto de Rosalvo encontrando-o deitado em sua cama e enrolado em suas cobertas. Num primeiro momento pensavam que estava apenas dormindo mas, ao se aproximarem, constataram que estava morto.

Morpheus