Retrato da realidade

Andando pela Rua São Paulo na cidade de Belo Horizonte que estava cheia de pessoas apressadas, sentadas pelos cantos ou vendendo alguma coisa, deparei-me com um cãozinho, abandonado, maltratado e faminto. Enquanto observava, o cão chorava as mínguas, farejava uma pessoa e outra a procura de seu dono. Lambiscava também um pedaço de pão de queijo que uma menina lhe jogara. Quando alguém lhe dava alguma atenção, ele abanava o rabo e o acompanhava até a porta do ônibus. Mas era rechaçado com um grito:

— Sai cachorro! Some!

Embora haja quem se sinta condoído, assim ficaria e assim desapareceria entre a multidão.

E aquele cachorro faminto estava tremendo de frio. Cambaleava esbarrando pelos cantos. E em uma porta de lanchonete embrulhado em um jornal amassado, um que exalava fétido como ele mesmo, deu-lhe carinho, acariciou-lhe os pelos e balbuciou qualquer coisa inaudível para os transeuntes cheirosos e bem vestidos que desfilavam naquela passarela. Causavam-lhes certa repulsa o estado em que seus olhos estereotipavam aquele velhote maltrapilho, barba por fazer e descalço. A repulsa também se dava pelo fato de o cão lamber as feridas daquele homem que para ele devolvera-lhe o amor que sentira. De uma forma é claro que para aquele homem ali naquele estado, aquele cãozinho fora o único a se aproximar dele: um nada para a sociedade fria feita por gente ignorante. Capaz de revirar a boca e torcer o nariz as necessidades do próximo.

Aquele cãozinho achara um dono. E o homem um amigo, e dividiriam o que conseguissem para aquele dia. Estendia a mão. A mão suja com feridas e brotoejas. Não se importava, pois não havia porque se importar. Os olhos ficavam fundos e amarelos de fome na virada do dia. E os do cão também, mas não saia de perto de seu mais novo amigo. Por dias, por semanas e meses um vínculo nascera. Uma espécie de necessidade do outro se formara.

Se ele, o homem, tinha nome? Quem sabe? Alguém se perguntava por que ele estava ali?

Andava se arrastando a procura de algo melhor para o dia. Banhava-se à tardinha numa fonte que havia próximo a Av. dos Andradas. E ali bebia e ali se recostava. Suspirava ao observar uma cena que lhe prendia. Um pai colocava seus dois filhos no banco e os ajeitava, arrumavam-lhes as roupas no corpo e mandavam sorrirem. Posicionava-se para tirar a foto e as criancinhas se divertiam com o pai na pracinha.

Então o homem, vou chamar-lhe de andarilho, pois nunca soube seu nome verdadeiro, enfiava a mão no único bolso quase inteiro que havia do lado esquerdo na calça velha. Tirava uma fotografia desbotada e amassada. Os seus olhos se enchiam de lágrimas e ele com extremo carinho tocava com o dedo indicador o rostinho na imagem da fotografia. Era muito parecida com a foto que o pai naquela pracinha tirava de seus filhos.

Deixou aquela cena que o comovera, pegou seu cobertor de lã e andava com o cachorro. Mais em frente no sinal de trânsito estavam dois pivetes com uma arma assaltando o motorista pela janela de um carro. O motorista estava sem reação dentro daquele carro luxuoso com uma identificação de veiculo de uso público na porta, que o andarilho não sabia dizer qual era. Mas ao ver àquilo mandou seu cachorro atacar os bandidos. E o mordeu bem no braço fazendo com que a arma caísse por debaixo do carro. Mas quanto ao outro tinha na mão uma barra de ferro e acertou o cachorro bem na costela. Fugiram em seguida. O cão agonizava o andarilho mal escutava o que o homem do carro dizia. Jogou-lhe dois reais no chão. E as moedas rolaram para dentro do bueiro enquanto acelerando, o carro sumia em meio aquele transito caótico. O andarilho olhava com absoluta tristeza o seu cão.

Eu o via dia após dia naquela praça e a verdade é que ele fora se definhando lentamente, pois não havia mais razão para sua vida. Ele andava cabisbaixo, encurvado e não falava mais com ninguém. Enquanto eu permanecia em um banco próximo lendo um livro no horário do almoço ouvia seus colegas falarem que desde "aquele" dia ele não queria mais comer.

Foi então que me aproximei e lhe perguntei:

— O que há contigo, meu amigo?

Mas ele só dizia coisas que eu não sabia do que se tratava.

— Era meu melhor amigo...

— Como?

—... e ele se foi. Se foi para sempre.

— Você não tem mais ninguém?

Ele estava muito fraco já que ficara dias sem comer e mal conseguia falar. Aí me mostrou uma fotografia onde estava ele mesmo com seus dois filhos. Perguntei-lhe seu nome, mas não me disse mais nada, se virou lentamente para o canto do banco e dormiu. Uma senhora também já idosa escorando em uma muleta que vivia por ali vendo meu interesse disse-me:

— O que você quer com ele?! Não vai conseguir nada! É como os outros mesmo, vem, tiram fotos, escreve e depois vai embora fazer notícia e não ajuda em nada e nunca mais volta!

Ela falou brava comigo. Confundia-me com outras pessoas, mas lhe expliquei que não era nada disso e lhe contei um pouco de meu trajeto pela vida. Seu nome era Judith.

— Você não sabe nada deste homem, não é?!

— Não. Não sei. Por quê?! Quem é ele?

— Este homem aí na sua frente tem uma história. Uma história linda!

— Então me conte! Qual é a história?!

— Ele era um escritor!

Espantei-me assombrado com o que ela me disse.

— Como assim?! Um escritor?! Você está brincando!

— Não, não estou. E, além disso, ele tinha esposa e filhos.

— É verdade. Ele me mostrou uma fotografia com os filhos. Mas, poxa vida! Um escritor?! Como veio a ficar neste estado agora?

— Não sei. O pouco que sei é apenas isso que me contou ha muito tempo e o que saiu em um jornal. Que falava do desaparecimento de certo escritor. A vida é cruel, meu filho, dá e depois tira...

No outro dia no horário em que pude procurá-lo fui direto a praça, mas não o encontrei em lugar algum. Procurei em todos os bancos que ele costumava dormir e nem sinal do andarilho. Mas encontrei Judith. Estava muito abatida alimentando os pombos com algumas pipocas. Sentei-me ao seu lado e ela me disse:

— Ele se foi, meu filho.

Levantando-se e apoiando numa bengala foi andando e falando:

— Ele se foi...

— Espere! O que aconteceu?

— Ele deixou uma foto e algumas coisas que escreveu nas ruas... se você quiser levar...

— Quero sim. Deixe-me ver.

Quando li os seus textos, realmente entendi muito do que ele vivia nas ruas. Tudo que lhe acontecera, inclusive o que estou contando agora.

Fiquei lá sentado por um bom tempo me perguntando: “Qual foi o sentido da passagem daquele homem no mundo?” Ele tinha uma vida, uma história e eu nem sequer soube o seu nome...

Geovani Silva
Enviado por Geovani Silva em 02/08/2014
Código do texto: T4907414
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