O saque do sax

Do sax, a nota solta, cobrindo a noite boba dos amantes que se odeiam. Ele sabe o que tem que fazer: tocar. Os dedos já estão demasiadamente doloridos. Uma duas três centenas de notas seguidas, perseguidas, desmedidas. A noite, aquela mulher triste, companheira dos insones, compositores, atores. Sim, estão todos fingindo.

O homem de casaco marrom se levanta e vai assustado ate o banheiro. Olha pra Lá, pra cá, e cai em Sí. A mulher ficou na mesa, fumando seu cigarro de filtro escuro, como escuras são suas olheiras. O homem voltou, encharcado de álcool e desculpas. Uma duas três súplicas. Ele segura-a pelo braço, ela se desvencilha. Toco tão alto que nem consigo entender o que dizem. Fica o adeus, e a fumaça do cigarro desenhando figuras disformes pelo ambiente.

Paro, agradeço as palmas. Já não consigo me emocionar com o que faço. O agradecimento é pelo dinheiro que já está em meu camarim. Ma a noite não me deixa descansar, nem as palmas, nem as almas. Uma duas três mesas se enchem de curiosos. Bebidas se cachoeiram naquela santa ceia dos Judas. As moedas estão em meu camarim.

Uma garrafa voa pelo ar, descreve uma incrível curva, e vai parar na cabeça de um sujeito triste e sem rosto, na verdade uma mulher. À noite, às vezes, as pessoas não tem rosto. O que possuem é apenas um adesivo muito bem colado.

Descanso, suando pelos dedos, pela alma. Hoje bem que poderia ser o concerto final. Sempre imaginei como seria. Sem palmas nem choros, sem risos nem brigas. Sol, Fá, Fá... não há lugar para o aconchego. Chegam cada vez mais, aos montes, carentes de suas próprias personalidades. Homens mulheres velhos prostitutas cheiradores de cola. O barman desliza pelo piso cheio de cacos de vidro e cascas de limão.

Cubra libre, saquê, daiquiri, molotov. Tudo está em constante choque, tudo está normal. Agradeço mais uma duas três vezes aos que me aplaudem olhando para o chão. Que afronta, quero estar sempre no topo.

Alguém me atira um cigarro, que agarro com firmeza. Dou uma duas três tragadas naquele cilindro amargo como as folhas de boldo que minha mãe costumava cultivar. Essa vai para ela... DO, DO, Ré... Pra trás não tem saída. Mais dez, e o bis.

A mulher levanta da cadeira e vem em minha direção. Na mão uma rosa, nos olhos um pedido. Sobe no palco e me entrega a flor. Os olhos, marejados, dizem que o pedido é para alguém. Dedico a musica para aqueles que trazem a alma rota, sem rota. Alguns choram, outros brigam, e o sax faz seu papel. Sussurra, grita, saqueia a atenção.

Faltam duas. Agora é a hora mais pesada. Os que aqui estão é porque se negam a se entregarem, preferem mentir. Conto um caso, que também é uma mentira. Começo. Paro. Volto, erro a nota. Peço um drink, me mandam uma garrafa.

O homem das súplicas e a mulher sem rosto agora conversam na fumaça. Miro os dois e volto à canção. O improviso é largo, estafante. Minha banda já está velha, como minhas músicas, mas meus cabelos brilham tanto quanto o meu sax.

O bis, para fechar mais uma dentre tantas noites pelas quais já passei. A caixa, suave dinâmica. Dum, dum, dum diz o baixo em meus ouvidos. São só compassos, sem passos em falso, cem passos e minha cama e meu cachê me esperam. Toco, assopro, uma duas três notas e fim. Os aplausos fazem eco, se multiplicam.

Saio do palco para o quarto. Um clarão imponente morde a vidraça da janela. A lua insone, boba. Chet foi buscá-la, talvez. Na mesa, brilha o meu cachê. Brilha o sax, o pirata dos desvanecidos. Uma duas três da manhã, hora de dormir.