O apátrida

O meu nome não importa, pode me chamar de Apátrida, foi assim que eu fiquei conhecido pelo mundo afora. Suponho que se seus olhos aqui chegaram, talvez você queira saber da minha história e porque eu ganhei este nome.

Bem, eu nasci num país como outro qualquer, com hino, bandeira, histórias e segredos nacionais. A maioria das pessoas nem se davam conta de quanto o Estado interferia nas suas vidas, mas isto foi me cansando de uma maneira incontrolável.

Fiz faculdades de direito, sabe, estudei em três diferentes. Depois de tanto estudar cheguei à conclusão de que, embora eu tivesse um número de registro, eu não era patrimônio do Estado.

Aquela conversa de pacto social pra mim não colou, só porque eu nasci aqui tenho que me submeter à vontade de pouco mais de quinhentas cabeças mancomunadas em me controlar de forma abusiva, só porque elas iludem aos outros? Contra fatos não há argumentos, exceto juridicamente, como se divulga, o papel aceita tudo, não eu.

Eu sou gente. Eu acredito que minha carne, sangue, ossos e ideais são meu direito natural inalienável enquanto ser humano que sou. Meus princípios me levam a isto e eu, sem eles, seria apenas ninguém. Mas o Estado tem o poder, tem prisões, carcereiros e policiais, promotores e juízes, advogados, tem muitas bocas pra alimentar.

Resolvi defender meu direito e fui considerado inimigo do Estado, condenado por desobediência e resistência àquela violência que foi o ato de minha constrição.

Eu, que nunca agredi ninguém fisicamente na vida, achei aquilo desnecessário, mas não foi o agente, e sim o Estado que me agrediu, o policial era só um número e poderia ter sido qualquer outro.

Criminosos são estes profissionais da lei, que me depois de meia hora de conversa me puseram em cana, eu que nunca roubei nem banana. O meio jurídico é coisa de louco, um ambiente em que ninguém se entende, construído com afinco para ser assim mesmo, uma teia de retalhos que só serve aos poderosos. Na porrada, na cadeia, o exercício do poder pela classe dominante é feito à força e eles chamam de "jogo democrático", uma piada de mau gosto.

Democracia, se por apenas um dia deixou de ser uma ideia e existiu de verdade foi na Grécia antiga, o sistema atual de representação indireta por mandatos tão longos é ilusório, uma forma de engabelar os cidadãos para que acreditem que decidem algo. Com políticos profissionais então, chega a ser um clichê de tão burlesco. Por favor, me poupem do seu papo furado, todo mundo sabe que é pelo poder que disputam, e nada em favor de outrem.

Mas o povo não vê isto porque tem medo de latim, e então ficamos assim. Aliás ficamos não, você talvez tenha ficado, mas meus princípios foram maiores que meu medo. Se eu nasci, eu tinha que ter um lugar no mundo pra viver por mim mesmo, abandonaria tudo por isto.

Então, assim que deixei o cárcere me dirigi à praia, e simplesmente para obter exito no plano que havia mentalizado na solidão do meu injusto confinamento, passei a me comportar como um número novamente, mas apenas nas aparências, pois por dentro eu já entendia que naquela bandeira não mais eu caberia, já tinha meu plano traçado.

Desenhei por meses, e finalmente comecei a construir o meu veículo de fuga, um misto de casa com barco que podia se recolher como submarino, para o caso de uma tempestade qualquer.

O El Niño existe mesmo, e eu não quero me atirar à morte, tive que me desdobrar, mas com tamanha vontade qualquer homem vira gênio, gigante, quase super humano. Não é pra me gabar, mas eu não só estava desafiando todas as forças armadas do planeta, como teria de enfrentar as forças da natureza.

Demorei um pouco, mas a minha arca solitária ficou pronta. Tinha espaço para produzir alimento, um deck dobrável para a prática de atividades, que podia se recolher para dentro de uma cabine estanque que ficava sempre submersa e era o quarto e sala da casa, com vidros no piso e nas paredes, o oceano seria o meu quintal permanente.

De noite, postei na internet todas as plantas e projetos alternativos do motor-home submarino que eu fiz para mim e quis oferecer para o mundo, junto com meu diário e minhas considerações acerca da minha conturbada decisão de me afastar de um mundo cada vez mais artificial, mas que era só o que eu tinha conhecido até ali, onde estavam todos que eu amei.

Eu tive de vir sozinho porque ninguém podia ter tido conhecimento deste plano, pois se eu contasse não conseguiria ter feito. As pessoas teriam me impedido, talvez me prendessem de novo alegando que eu era louco, um "risco contra mim mesmo", como se a tranca não o fosse.

As pessoas não costumam respeitar a decisão dos outros, mas é porque aprenderam com o Estado, se acreditam que precisam dele, que seja. Não quis fazer a cabeça de ninguém, apenas compartilhei tudo pois nunca quis ter nada sozinho, só pra mim.

Enfim, lancei-me ao mar, tinha um rádio comunicador e a bateria era o Sol, tinha algumas plantas para consumo próprio e uns três dessalinizadores de água, muita tralha de pesca e vontade de ser livre pelo maior tempo possível.

Foi por isto que eu fiquei famoso, virei notícia, fui procurado, mas o mar é grande demais e nenhuma autoridade conseguiu me parar até eu chegar em águas internacionais.

Coloquei minha bandeira pessoal no mastro, peguei minha guitarra e fiz um som tão leve que quase eu voei. Veio até baleia pra me ouvir, de noite, elas cantavam pra eu dormir.

Passados alguns meses, eu conversava com uns albatrozes, quando me surpreendo com uma casa como a minha, que vinha navegando até mim. Era uma louca apátrida que queria me conhecer de verdade. Inacreditável.

Ela me contou que no mundo todo estavam construindo motor-homes anfíbios por causa da minha ideia, acreditaram que o mar seria uma nova fronteira da liberdade humana, e abandonavam tudo para a aventura de deixar de ser número e reaprender a viver sendo apenas gente.

E foi por isto que eu fiquei conhecido com O Apátrida, e essa foi a minha história.

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 05/08/2014
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