MOMENTOS (Florescência) Casa grande da sede

CASA GRANDE DA SEDE

Fila Sabino

Passado. Reviver o passado. Pensar no passado. Por que pensar? Já me é tão familiar surpreender-me voltado no tempo. Iludido ou não o sino da minha infância ainda repica alto. Compassado. Musicado. Mantendo, em som, o peso e o equilíbrio de minhas bases cristã e familiar.

Ontem!... Um concerto matinal, em uma só nota repetida. Hoje!... Um refrão, em todas as notas relembradas.

Cinco horas. O anúncio com presteza. Dia. Mais um a perfilar a pista dos que se vão alinhavando, em fila indiana, a corrente sem elos da existência, mantendo na vertical a escada sem degraus do destino e seus vieses. Momentos sublimes, pontilhados de felícias e reveses, o caminho a ser percorrido por cada ser respirante em passagem por estas galáxias. Dias límpidos ou grises a cerzir nossos anseios.

Manhã densa, anuviada, morosa, aquecendo a preguiça de se sair da cama para encurralar-se, como bezerro enjeitado, a chupitar as tetas de cada uma das mães berronas, nesse curral mágico, apaixonante e indescritível que se denomina dia.

Aragem amena. O sol surgiu meio envergonhado, pois o frio matinal lhe aquecera o sono e ele amanheceu tardio. Apressou-se em se manter supremo, rei. Venceu a hora. Clareou a terra. Aqueceu-se. Avermelhou-se. Humilhou a chuva e murchou a flor.

Meus primeiros passos foram rumo ao terreiro. Chão firme, seguro. Ar pesado. Pouca coisa mudara aquela chuva da madrugada. Os frisos desimpedidos na terra davam conta da enxurrada que por ali trilhara. O sol, a meio termo, já bebera toda a água que embebera o solo. Goles rápidos. Tudo muito rápido. Sôfrego.

Paisagem cálida. Marasmante. Com mansidão, um vento brandíssimo valseava as copas das árvores mais experientes em aproveitar bem a umidade da noite e poder, ainda no esvaecer da seca, preservar o verde e passar o dia sombreando desfavorecidos. Embora trôpego, era um limiar de inverno alvissareiro. Prenúncio de profusas águas

O gado, em tropel, já se ocultara na curva do corredor, rumo ao bebedouro. Um bater de cancela pegou-me desprevenido. Assustei-me. Ouvi vozes lá pros lados do 'engenho velho' e mudo. Peguei caminho. Tomei um atalho por um carreirinho curto, semiaberto, atravessei a pinguela do riacho, indo ter-me à entrada do picadeiro. Leve fragrância evidenciava, ainda, vestígios das últimas moagens. Avancei lento por sobre a frouxidão da terra misturada a bagaços meio decompostos. Uma sensação gostosa formigava-me os pés, como se estivesse caminhando um colchão mergulhado em palhas e paina. Negras formigas cabeçudas e ligeiras em correição! Uma chusma delas. Não picavam, mas cocegavam-me e gasturavam-me as pernas prazerosamente. Duas compridas e roliças manjarras, braços responsáveis pela rotação das três robustas e engendradas prensas, compunham o bojo daquela engenhosa engrenagem composta simplesmente de madeira. No todo, quando observado de relance, tinha-se uma breve impressão de se estar diante de um curto avião na vertical, em pé. Era ele. Imponente, garboso, ousado, mas sóbrio: o vetusto “Engenho Velho”. Aquele aparador de famílias. Encampador eterno da mão de obra braçal. Aquela fábrica incansável na produção de bagaço, garapa, melado, puxa-puxa, rapadura, batida, cachaça, água fraca, vinagre, etc. etc...

As vozes se fizeram nítidas e bem conhecidas. Dentre elas uma se destacou e eu ouvi meu pai dizer mansamente:

_ É! Graças a Deus as água esse ano vão chegar cedo. Essa chuva dessa noite ainda tá meio fora de tempo. Por isso, o que a gente ainda tem que fazê carece de pressa.

_ O Sinhô tem quantas moendas de reserva pra esse ano que vem, Padindô?

Perguntou Dazinho.

_ Com essa que nós tamo acabano de fazê, completa trêis. Mais parece que vai precisá de mais u’a, já que comprei o canavial de cumpadre Derço. Aquele lá da Lagoa das Tabúa... é muita cana... e falano nisso a gente tem de dexá pronto uns déis dente de moenda de reserva também.

Meu tio Dão, moreno parrudo, tocador de violão, famoso em saltos-mortais e em montar burro bravo, (discípulo de um insigne mestre na arte da carpintaria, meu tio Silvino), acabava de lavrar o último dente da moenda. De enxó ainda em punho e grosa enfiada na cinta, prestou muito atenção às próximas palavras do meu pai.

_Vocês todos tão sabendo. Eu já tinha avisado todo mundo aí nas redondeza e até o povo lá do Alegre que ia dá uma festa no primeiro domingo depois das primera chuvarada. Então é nesse agora. Lá na Casa Grande da Sede.

_O Sinhô já convidou o povo do Lajeado?

Quis saber o ‘véi’ José “da casa da roda”.

_ Já convidei sim. Chamei até o povo lá do Brejão de Cima, também.

_ Iii quem iiivai iitotocar na fefesta, iiicumcumpade Sssssarvadô?

Indagou Urbino.

_ Eu vou buscar o Satilim lá no Descoberto... num tem sanfoneiro melhó que ele aqui nesse chão não! Só o Rei Gonzaga, do baião, lá dos Exú!

_ Iiiêêta quiquiii ivai dá iié gente quiquii só muuutirão!... Iiiaa nenegaiada dos Cacabeça iivem ié tudo!... Iiintonce vaiii é sê u’a iidirgramera de iiifesssta, cumcumpade!!!

_ Pois é... é pra sê, cumpadre, Deus há de provê!

E continuou, no seu vocabulário miúdo.

... O Seu Badu me confirmou que vai trazê os seus cantadô de Reis... que é pra gente durante a fulia incomendá u’a Ladainha pra São Pedro... meu pai já era devoto d’Ele e eu também sou. Santo milagroso... de proficia e da inspiração divina... (Olhou pro céu e se benzeu).

_ Iiiqui coisa qui vai ié sê iilinda iipor didimais, cumpade!

Urbino “fazendeiro” era compadre, amigo do peito, da confiança e da maior consideração do meu pai. Era gago, um pouquinho estrábico, animado, prestativo, respeitoso e valente igual uma caninana. Gostava de brincar, uma chacota aqui, outra ali. Gargalhada solta! Só cavalgava sua mula “Tirana”, luxuosa nos seus quase dois metros de altura. Arreio brilhoso. Um alforje e uma ‘winchester’ dividiam o cabeçote. Um laço de couro trançado, enrolado na cabeça da sela. Pelego vermelho. Peitoral constelado em bronze. Rédea confeccionada em crina. Fivelas, estribos, esporas e brida em prata. Na cintura, corrião com inseparável coldre vestindo um revólver táurus 38. Apreciava uma cachacinha e adorava um rabo-de-saia.

Meu pai, num colóquio entrecortado em pensamentos e fundos suspiros, prosseguiu:

... Todo ano, quando vai chegano essa época, eu lembro com u’a saudade danada do véi meu pai. Ele era o home que mais gostava de chuva no mundo... Ensinava pra gente que chuva era sagrada, benta e milagrosa... Que chuva tinha que sê venerada e devotada igual Santo!... E é mesmo, chuva é Santa mesmo!... Contava sempre que essa festa na Casa Grande da Sede, no primeiro domingo depois das primera chuvarada, vem desde o levantamento da derradera parede da salona lá de casa, que a primera chuva do ano derrubou... Dizia que foi u’a chuvona danada, que pegou de surpresa a casa com as parede levantada, já no ponto de sê encaibradas e pôr as ripa pra enteiá...

Foi quando eu comecei a perceber o quanto significava aquela casa grande de fazenda no seio de nossa família e daquele povo, que já se acostumara para lá acorrer, se refugiar e frequentá-la quando das missões, das novenas, dos reisados, dos mutirões, das necessidades de se abrir uma conta na “Vendinha” que ali, num dos seus compartimentos, se instalara desde os tempos do meu avô. Povo que para lá rumava quando das políticas, dos barulhos, dos velórios, dos casamentos e dos batizados que meu bisavô, meu avô, o respeitado “Major João Sabino”, e mesmo meu pai apadrinhavam.

Aquela Casa Grande da Sede, encravada naquele recanto da fazenda, distando quatro léguas do arraial, era uma lua-cheia, no seu brilho de cal virgem, para onde todos viravam os olhos, os passos, as mãos e o coração, vivendo as tristezas e as alegrias do quotidiano daquele pedaço de chão e do dia-a-dia sertanejo. Ali se reuniam patenteados coronéis, majores, abastados fazendeiros, políticos, mandatários de suprema influência nas decisões que norteavam o “modu vivendis” da região. Ali, com a devida permissão, pernoitavam tropeiros-viajantes, com suas encargadas e ávidas caravanas. Arranchavam, sem ordem expressa, os ciganos, (ciganada peregrina), que logo eram expurgados, devido à fama que tinham de usurpadores, enganadores, larápios, gatunos, espertos, ladrões, raptores de 'mulher bonita' e mais uma série de indigestos adjetivos que lhes pespegavam por mau comportamento.

Continuei ouvindo meu pai e descobrindo:

... Meu avô então resolveu fazê um mutirão pra levantá, de novo, a parede caída. Foi u’a festona!... Como assucedeu de sê a primera chuva e a festa caí no primeiro domingo depois dela, a lembrança ficou na idea do povo e todo ano meu avô repetia. Aí, quando ele morreu, o véi meu pai continuô com a devoção... e desde que meu pai se foi... que Deus lhe tenha... eu faço a festa, lá na Casa Grande da Sede.

A história prolongou por bom tempo e eu permaneci ali ouvindo, sentado naquele cepo de chanfrar cana. Calado, como sempre fui. Distante dos brinquedos de sabugo, emparelhados dois a dois. Cada fato narrado morria sucumbido casa grande adentro. Tinha início nos arredores, com personagens diversos. Vinha tombando nas palavras escorregadias do meu pai e do meu tio, invadia o povo, a fazenda e consumava-se ali entre as portas, os caibros, as paredes, os segredos e os mistérios do casarão.

Depois de divagarem por vários assuntos e casos, se divertirem com as lorotas de Urbino e tio Dão enquanto trabalhavam na reforma do galpão, (barracão que servia de depósito e armazenamento da produção, do mantimento e dos utensílios empregados no período de moagem), meu pai se dirigiu a Dazinho, seu afilhado:

... Ô Dazo!

_ Sinhô!

... Cumpadre Selvino tá com alguma empreitada?

_ Tá não, Padindô... ontem ele entregou o carro-de-boi que ele tava fazendo pra Seu Odil.

- E Jona, Dão, tá ocupado?

-Também não, Salvadô... ele tá é mei perrengue, com u’a dô na perna, que aquele burro que ele tá amansano pra Jovino rumô ele na cerca!

... Quá!... acho que isso num vai atrapaiá não... Jona é tinhoso!...

Tio Jonas era irmão gêmeo, univitelino, de tio Dão. Eram os gêmeos mais parecidos que já vi. Um era, originalmente, fotocópia realíssima do outro. Exatamente como no dito popular, com o devido respeito: ‘cara dum, fucim do outro’! Eram iguais em tudo. Na personalidade, nas atitudes, nos gestos, na serventia, nos acertos, nos erros, na coragem, na alegria, na tristeza, na criatividade, na dignidade, na transparência, na bondade, no caráter, no zelo, nas proezas, em tudo em fim. Tudo mesmo! Eles eram tão idênticos que mesmo nós da família nos confundíamos. Com os outros, os de fora então, isso acontecia constantemente, em situações adversas: embaraçosas, engraçadas e, às vezes, constrangedoras. Contavam que as pessoas deviam para um e pagavam para o outro... e que eles recebiam!.. Os compadres, que eram muitos e tinham mais intimidade, chegavam e cumprimentavam o compadre errado: “Bom dia cumpade Dão... (e tio Jonas respondia)... bom dia cumpade, como tão as coisa, tudo bem?” Então esse debulhava tudo o que lhe estava acontecendo, até segredos, 'coisas da intimidade'!... As namoradas, ou melhor, como diziam eles entre bons risos... “as pretendida, muitas dela namoraro dois rapaiz por muito tempo sem sabê, pois quando um de nóis tinha algum problema que atrapaiasse ir encontrá com elas o outro ia no lugar fazê as vez... e elas num discubria nunca... nem disconfiava!”... e era bom!... E riam! Divirtiam-se! Falavam que não corrigiam as pessoas quando se confundiam porque elas ficavam “desajeitadas, sem graça”. Mas comigo eles inventaram um jeito, um modo maravilhoso de se identificarem, de me dizer que eu estava falando com o tio errado. Assim que um deles chegava ou me encontrava, eu me aproximava e ia dizendo logo: “bença tiJonas... (ele respondia)... que Deus te abençoa tiDão!”... E eu via e ouvia aquela risadinha graciosa, carinhosa e gostosa! De outras eu chegava e: “ bença tiDão... (e ele respondia)... que Deus te abençoa tiJona!”... Eu via e ouvia aquela mesma risadinha graciosa, carinhosa e gostosa!...

Meu pai continuou falando:

...Ó Dão, eu quero que hoje de noite ocê conversa com Jona e Zé de Tervina... fale que vou precisá deles. Pra eles ir lá em casa amanhã bem cedo, que é pra gente combiná. Eu vou dá u’a ajeitada na estivinha, ela tá muito arruinada... tá pirigano qualqué hora dessa um animal enganchá a perna lá e quebrá. Aquela ponte tem pra mais de déis ano que eu consertei ela. Vou reforçá ela bem... vedá direitim e colocá terra de cascái... aproveitá e fazê os corre-mão também!

... Tava precisano mermo, cumpade... ela tá muito faiada e cum pôca terra. Num sei se o cumpade já viu, mais tem dois pé-direito lá que tão estragado e muito fora de prumo... ela inté já dirriô um poquim prum lado!

Observou o ‘véi’ José da 'casa da roda'.

_ É bem verdade, cumpadre... eu já vi sim. Tá muito fei e pirigoso. Por isso mesmo que eu não posso dexá esse serviço pra depois... é muito arriscado. Vai passá um bocado de carro-de-boi lá carregano gente que vem pra festa. E ainda mais que nóis temo de atravessá ela, transportano as moenda no carretão. É peso pra daná!... Ainda hoje mesmo vou lá na casa de cumade Branca conversá com Selvino e depois em cumade Bertina falá com José. Vou acertá com eles o preparamento do maderame. Ocê também Dão, vou precisá de sua ajuda no aparo e lavramento das madera. Enquanto isso, Fidercino e Justino Cabeça vão com Manel de cumpade José carreano a terra de cascái. Amanhã na parte da manhã nóis já vamo carretar a madera. Eu suspeito que com nóis tudo junto, agarrado nessa labuta, se esse serviço num saí num dia de dois num passa!

_ Num vai dois dia não, Salvadô!

_ Iiióó iicumpade Sssarvadô, iipode iié contá iicomcomigo quiquiii eu tamem vô vim iiajujudá. Iicumcum nóis tudo iijunto aaqui, liligerim nóis vai iié dedexá essa estitivinha cum cacara iié de princecesa! U’a bebelezura!

_Vem mesmo cumpadre! Que é procê, Dão e Jona fazê a gente ri aqui um bocado no suó da treliça!

Até meu proferir: 'vamo cumê... tá na hora do almoço'... a prosa e o trabalho foram contínuos... e esclarecedores!...

Aquela casa grande cresceu e multiplicou-se dentro de mim. Ali, pela primeira vez enxerguei o mundo pela janela. Pelas suas janelas, pelos olhos e as palavras de meus pais eu me despertei para a visão externa da existência. Insurgi para o animado e o inanimado. Coisas inerentes à minha percepção infantojuvenil se externaram, exteriorizaram antes mesmo de eu ser apresentado à fervura, ao burburinho do dia-a-dia de um vilarejo, de um arraial ou de uma cidadela. Foi dentro das suas qualidades de reconhecer virtudes, de absorver vicissitudes, de dar e receber as coisas com simplicidade que eu me conceituei para a vida. Vivenciei seus padrões de procedimento, de sentimento, de estímulo, de regras, liberdade e paz. O reflexo de tudo isso me é, ainda hoje, um desejo íntimo de voltar, volver o tempo, recomeçar e reviver tudo de novo. Essa vontade incontida de encontrar e enxergar a paz em todas as esquinas, em todas as casas, em todos os leitos, em todas as vidas, em tudo. Paz espalhada, sem noção, sem regência, sem norma, sem critério, sem exemplo, sem princípio, sem cultura. Simplesmente paz!.... Feito placas de trânsito... por todos os lugares!...

Aquela casa era de paz, sim senhor!

Tesouro. Arca. Nau. Casa Grande de Sede corpulenta e acomodada! Vivendo a calmaria de um cisne sobre um mar que destoava com o tempo. Que trazia na alma dos seus oitões um reino de verdades. Que escancarava as portas aos desesperados em fuga dos agravos da sorte. Que socorria os que amargavam a cruel imposição do infortúnio. Que dividia com os bem-sucedidos as benesses do prazer. Que era rijamente fiel a Deus e, com júbilo, propagava Sua escola. Aquele lar aberto ao infinito, às águas, às secas e a todas as nuanças. Aquela escola de crescer gente e alongar datas. Aquela Casa Grande da Sede morreu!

Morreu para os olhos e para os dedos a sua estrutura física. Morreram para as taramelas as suas portas.

Ruiu-se ao labor do tempo. Fanou-se!

A sede fora mudada para o outro vértice da fazenda. Toda sua composição fora transportada e, com ela, sua autodeterminação, experiência e o poder de manter-se fiel aos conceitos e heranças adquiridos.

Ruiu-se! Foi-se a magia. Foi-se o encanto. O desencanto ergueu ali o seu castelo e a saudade nele se fez rainha. Hoje ainda reina lá, robusto, o império do abandono! O tempo sempre vence os que estão expostos aos olhos e ao tato!

...Mas, por mais que o tempo vença, por mais que ele construa ou destrua em seu ritmo persistente, compassado, ativo e único aquilo que nós quiséssemos para sempre perdurasse, nunca irá arrebatar, à imaginação, o conceito, a lembrança e a imagem formados com o passar dele mesmo em torno de um pedaço de vida vivido naquela Casa Grande da Sede!

...O tempo... Ah! O tempo! Este, sim, destila para os olhos... mas restila para a mente!

Aquela Casa Grande da Sede era de paz, sim senhor!