Dedão

Essa estrada de areião vai dar na vila de São Sebastião da Mandioca, aqui, no interior do interior desse Brasil de meu Deus, esquecido inclusive por ele. E esta cruz tem uma história de que quase ninguém mais se lembra... mas eu sei e vou contar, para que vocês também a contem a seus filhos e não deixem que caia no esquecimento.

Nos idos de 1957 nada havia na vila além de ruas de terra batida, uma dúzia de casas simples, uma escola rural, uma venda, a capela e algumas roças, tudo cercado por vastas plantações do tubérculo que lhe complementa o nome. Eu trabalhava como jornalista recém formado na capital quando vim parar por aqui meio sem querer, acompanhando um industrial escocês que queria pesquisar uma substância existente na mandioca para incrementar sua produção de uísque.

Nessa época, vivia por lá João Pedro Salviano Teixeira, trabalhador do campo (como praticamente todos), muito conhecido pelos seus pés grandes. Em virtude de sua característica física, quase ninguém sabia seu nome: todos o chamavam por Dedão.

Um dia Dedão ia para o roçado de mandioca, como fazia diariamente, quando deu uma solene topada numa pedra gigantesca, semienterrada bem aqui, no areião da estrada. Graças à força e dimensão de seu volumoso dedo do pé, a pedra, ao invés de feri-lo, voou por cima de sua cabeça e caiu ali, no chão, logo atrás dele.

Dedão, curioso, pegou a pesada pedra e a examinou com cuidado. Com seu faro de ex-garimpeiro, logo notou tratar-se de uma imensa pepita de ouro que devia valer uma fortuna, para ele, incalculável.

Antes que a notícia corresse a cidade como fogo no mato seco, Dedão guardou sua pepita dentro do urinol, enquanto pensava o que fazer com ela. Pensou, pensou e entendeu que, numa cidade carente como aquela, onde tudo faltava e a vida era difícil, deveria usar o dinheiro que certamente viria para ajudar o povo e trazer um pouco mais de conforto para seus companheiros de lida e sofrimento.

E foi assim que, em pouco tempo, São Sebastião da Mandioca transformou-se. Todo dinheiro conseguido com a valiosa pepita foi gasto em melhorias. A capela virou igreja, nasceu uma pracinha com coreto, as casas foram reformadas e pintadas e até vieram de Rio do Umbu alguns profissionais, como um boticário que abriu na praça uma farmacinha muito bem montada. Chiquinho da Venda aumentou seu estoque de artigos e, o mais importante, um agrônomo da capital foi contratado para dar um auxílio nos roçados de mandioca, ensinando novas técnicas de cultivo e plantio. Com o aumento da produção, nasceu a Coopeoca, a cooperativa que uniu os agricultores e impulsionou as vendas de sua riqueza maior. Eu e o escocês acompanhamos tudo, mas ninguém queria que isso fosse divulgado na capital, com medo de que o estado pudesse querer tomar conta da vila. Por isso, juramos manter segredo.

Começava-se a pensar em pleitear a emancipação da vila e sua elevação à condição de cidade, deixando de ser um bairro rural esquecido de Rio do Umbu. Obviamente Dedão tornou-se uma celebridade muito amada e admirada... e, claro, o único candidato, escolhido unanimemente, para concorrer ao cargo de prefeito!

Mas nem tudo eram flores de mandioca. Em Rio do Umbu e na vizinha Clareira do Mato Dentro, corria o boato do roceiro que ficou milionário e tinha comprado todo mundo só para ser prefeito da futura cidade de São Sebastião da Mandioca. Diziam inclusive que, do montante recebido com a venda do ouro, ainda havia sobrado uma fortuna para ele. A inveja corria solta e ninguém fora da vila acreditava que Dedão não tinha conservado nem um centavo do dinheiro da pepita.

Foi então que a vida de Dedão virou um inferno. Sua casa foi invadida inúmeras vezes, tendo inclusive vários penicos sistematicamente destruídos. Escapou por pouco de uma tocaia e levou uma sova quase fatal. Desiludido e cansado por ter perdido a paz, enfiou seu chapéu de palha, preparou sua trouxinha, botou-a num bastão para apoiá-la no ombro e partiu, madrugada ainda escura, pela estrada do areião, mascando um capim. Triste, sem rumo e desenganado com a inveja e a maldade dos homens.

Quando chegou ao local onde havia encontrado a pepita que no fim acabou sendo a razão de seus desalentos, pegou dois gravetos e atou-os em cruz, fincando-os na beira da estrada. É esta mesma cruz que está aqui, firme até hoje. Ele acreditava que este havia sido o local da sua morte, que a cruz passou a simbolizar. Dedão havia morrido. Partiu para sempre de São Sebastião da Mandioca e, anônimo desde esse dia, manteve-se sempre caminhando, tendo ficado conhecido em todo lugar como João Andante.

No final das contas, o escocês quis prestar uma homenagem ao homem cujo caráter admirava. Criou de fato um uísque com a tal substância da mandioca e, ao pensar no rótulo, imaginou o perfil de João Andante e sua trouxa, caminhando sem parar... porém, na ilustração, tirou-lhe a trouxa das costas, o chapéu de palha da cabeça e botou-lhe umas roupas clássicas, botas e cartola, para dar ao personagem a nobreza que ele possuía internamente. Nasceu a figura altiva, sempre caminhando, de Johnny Walker.

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Nota: Obviamente o conto é absurdamente fictício, mas João Andante existe mesmo. Era o nome de uma cachaça mineira, cujo rótulo satirizava a figura de Johnny Walker mostrando um andarilho de chapéu de palha, trouxa às costas e mascando um capim. A gigante fabricante do uísque abriu um processo de plágio contra os fabricantes da aguardente que, derrotados, mudaram a marca para O Andante. No novo rótulo, a figura do capiau continua intacta - mas suas pernas foram cortadas...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Uma cruz na beira da estrada"

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