MANHÃ, MANHÃ

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  Manhã de inverno, 2014.
  Logo que Ibandro (é o seu nome) abre a janela do quarto, o pessegueiro, do outro lado do muro, querendo mostrar como está agradecido pelos chuviscos de poucos dias atrás, exibe-se em seu novo trajo ainda inacabado, porque ainda não primavera: nele, folhinhas verdes, tenras, rebrilhando ao sol de céu azul, limpo; junto às folhinhas, agarradinhas a elas, florzinhas rosadas, personagens miúdas que comprovam a fertilidade do quintal vizinho - não obstante ser cinzento, pelo cimentado - onde pequenas aberturas circulares ao redor das plantas permitem parcimoniosos goles d'água ao solo, quando as chuvas vêm. (Elas vieram tão poucas, há poucos dias!...)
  Não só o pessegueiro se exibe: também o limoeiro, a laranjeira, o mamoeiro, a roseira, o quiabeiro, a parreira com seus ramos secos, verdadeiros cipós ressequidos, entrelaçados, sem rumos, qual neurônios confusos em cabeças por isso mesmo confusas, ramos-cipós pesados demais para a frágil latada que os sustenta. Dessa parreira anteontem Ibandro imaginara: " - A videira secou!"...  No entanto, não só ela, mas todas as demais plantas no quintal se mostram enrijecidas pelo sorvo escasso da garoa efêmera há uns dias caída; o que o levou a exclamar:  "- Vivem todas, meu Deus! Como rejubilam, pelo tão pouco recebido das nuvens!..."
  Não estão no pessegueiro os passarinhos, como de costume acontece dois ou três ou mais deles estarem ali a saltitar e que nem se assustam quando a janela todo dia se abre. "- Pudera, Ibandro! É o adiantado da hora; você acordou tarde!..." - diz ele para si, ainda fazendo chacota: "- Passarinho não se aposenta, Ibandro; passarinho tem mais o que fazer!..." 
  D
e repente, um beija-flor que, de tão pequeno, não fora notado na árvore de fronde mirrada, surpreendeu-o, ao sair voando. Fê-lo  lembrar de quando foi chamado "vagabundo" por um certo mandatário-mór... E mais uma vez fez pilhéria:
" - Será que o beija-flor teve tempo de colher coisas doces?... Porque, o homem que nos chamou a todos "vagabundos" certamente teve tempo de colhê-las!..."                   
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  Manhã fria e clara como esta recorda outras manhãs, longínquas, de outros invernos.
À mente de Ibrando vem o menininho que ele foi (nem gordo nem magro) descendo os oito degraus da escada de pedra, da cozinha para um outro quintal: o pequerrucho veste pijaminha de flanela leve, está sem meias aquecedoras nos pés calçados em tamaquinhos de madeira. Leva consigo toalhinha branca, de tecido ralo de algodão, e escovinha de dentes feita com cerdas de crina de cavalo: são sete horas; meio a contragosto (está tiritando de frio!), o moleque desce para ir lavar o rosto no tanque à entrada do porão da sua casa. Sobe na plataforma de tijolos semienterrados no chão de terra escura - obra providencial, para não se pisar em lama na época das chuvas -, e fica na ponta dos pés, ganhando altura para alcançar a torneira, que logo abre. Suas mãos sentem a intensa friagem que as envolve, qual luvas finas, membranas de vidro, quase inflexíveis, tão gelado é o jorro d'água que as dessensibiliza, endurecendo-lhes as palmas, roubando-lhes o tato. - "- Uuusch!... - reage, ao toque arrepiante. Sucede-lhe imediato calafrio; os joelhos tremem; os dentes agora rilham. Desde que saiu da proteção dos cobertores, o pijaminha de flanela já lhe não oferece os mesmos calores; vestuário pobre de sustanças, não é suficiente para protegê-lo do contraste de temperatura entre o quarto morno e o quintal hibernoso, na manhã há pouco saída do relento da madrugada. "- Coragem, moleque!" - tartamudeia Ibrando, emocionado.
 Dentro em pouco o sol estará mais alto e espalhará quenturas nos recatinhos das casas urbanas, ora sombrejados por elas mesmas, habitações construídas ao rés da rua, meio assobradadas quando vistas dos quintais, por causa do desnível em relação às calçadas fronteiras, formando-se, então, os porões, que as protegem de umidades e que servem de depósitos para lenhas de fogão.
  ...Dentro em pouco, luzes matutinas  se enveredarão nos espaços entre as casas avizinhadas.
Dentro em pouco, o espelhinho pendurado na parede do tanque, e que o pai usa ao barbear-se, refleti-las-á nos olhos remelados da criança. - Coragem, moleque!...
  Os dentes rilham; os joelhos tremem; sucede-lhe calafrio... Mas, eis luzes matinais chegando, e que vão encontrar a tal vidracinha espelhada acima do tanque, logo reverberando nos olhos empapuçados e sonolentos do pequeno... Se ânimo lhe faltava, ganhou-o agora! faísca repentina lhe espertando a coragem. Animado, portanto, o menininho pousa a escovinha junto aos sabões do tanque; a toalhinha, joga-a ao pescoço, à feição de cachecol; esfrega vigorosamente as mãos, despedindo o entorpecimento que as estorvava. Até há pouco enovelado em indecisão, o fulgor do espelhinho lhe acelera os movimentos. Molha as fontes, a testa, as bochechas, os olhos, livrando-os das remelas; escova os dentes; umedece os cabelos, penteando-os em seguida; sente, enfim, a gostosa sensação do despertar, do acordar num novo dia, lindo e claro dia de inverno, feito de longas horas para serem desfrutadas pela criança que é!... Vai-se, pois, o sono que ainda restava... vão-se os temores da água fria.   
  Enxuga-se; sai andando pelo quintal; vai observar a laranjeira, que se exibe no novo trajo ainda inacabado, porque ainda não primavera: nela, folhinhas verdes, tenras, rebrilhando ao sol de céu azul; e agarradinhas a elas, precoces florzinhas brancas, que recebem  a visita de abelhinhas.
  ...Assoma-se um sorriso no rosto da criança, na manhã de inverno de 1943...     
  (...)
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  Manhã, manhã...
- distanciadas manhãs, irmãs siamesas separadas pelo tempo, há décadas, muitas décadas "- ...como distanciados, separados são esses dois quintais!...", diz para si mesmo Ibandro, igualmente sorrindo, feliz, nesta manhã de inverno de 2014.
  ... Então, suspira e sai da janela.

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Ago.18, 2014