O homem aéreo

O homem era tão aéreo que tropeçou num clichê enorme, e ficou pendurado numa raiz exposta num penhasco, como nos filmes, quadrinhos e desenhos animados... Todo mundo um dia também já tropeçou em algo, mas poucos tropeçaram bem na beira do abismo, pouquíssimos sobreviveram.

Ele foi se cansando e achava que iria cair porque não aguentaria segurar-se, mas decidiu ficar só mais um minuto por causa da fé que tinha, da esperança de que poderia ser que alguém lhe entendesse e viesse lhe ajudar.

Passaram-se as horas, os dias e meses e apareceu muita gente, a maioria nem percebeu, alguns fingiam que não o viam, poucos lhe cumprimentavam e seguiam em frente. Eles pensavam "se ele caiu, bem feito, deveria ter visto um clichê tão grande. O mundo já está muito cheio, então melhor um a menos, que vá morar no buraco, vai sobrar um terreno".

Mas o homem segue naquela força que nem ele sabia que tinha, fica se segurando bem naquela raiz pelas quatro estações, e de novo, e de novo. É evidente que ele teve algum suporte, alguns parentes e amigos vinham lhe trazer água e víveres, e estes lhe diziam "se você caiu, era seu destino cair, se tiveres força sairás daí, só os fortes sobrevivem".

Meia dúzia ainda tentou salvá-lo, fizeram pensamento positivo, torceram e tiraram no palitinho mas não conseguiram voluntários para chegar na beira do abismo, pois era muito perigoso.

No terceiro inverno dependurado, o homem perdeu a esperança, e segurava-se só de raiva. Pensava que era muita mesquinharia ninguém lhe oferecer uma corda, já que muita gente tinha, foi ficando resmungão e chato e começou a olhar para o buraco com uns olhos cansados.

Numa tarde de segunda-feira, depois de todo aquele esforço, suas mãos já fracas o traíram e a gravidade fez a sua parte, ele caiu no fundo do abismo. Seu grito foi sumindo até que não mais se ouvia, seus entes queridos perderam o fôlego e ainda choravam, quando se deram conta do milagre, que já se mostrava desde a primeira frase.

De tão aéreo que era o homem, nem sabia que podia voar sem ter asas. Quando acabou-lhe a força e faltou-lhe o chão, foi aí que ele se descobriu voador. Foi da desgraça completa ao sonho mais lindo em pouco menos de um segundo, e no decorrer do seu pior momento.

Agora ele voa pelo abismo todo dia, querendo poder salvar outro avoado caído, é que os seus dias dependurado lhe deixaram estas duas marcas de caráter, a empatia e a compaixão.

Hoje, depois de pousar à noite, ele encontrou em si estes versos, forjados no tempo do abismo:

"Você está se segurando desesperadamente à uma rotina massacrante? Está caindo na vida, num abismo sem fundo? Pensa em amaldiçoar as suas origens e o seu destino? Pois então saiba, só conhecemos nossa força quando somos testados, pois olhe pra dentro e conheça a si mesmo, use o seu próprio talento e aprenda a sair voando do seu jeito. Você pode, e só precisa acreditar em si mesmo. Somos todos parte de algo muito maior do que aquilo que nos incomoda nesta vida".

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 19/08/2014
Código do texto: T4928261
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