Táxi (julho de 2014)

Sou do interior, mas vivo na capital há exatos vinte e dois anos. Tenho trinta anos de idade e sou casado. Trabalho como taxista para manter minha esposa, com dois filhos, e minha sogra que vive conosco em uma casa grande num bairro de classe média da cidade.

Aprendi a beber o sonho: Acordo diariamente às cinco horas da manhã, quando começo meu expediente. Nunca um dia de trabalho é igual ao outro; há vezes em que vejo o dia amanhecer sem fazer dinheiro e há vezes em que encontro passageiro apenas próximo ao meio-dia.

Bebo o sonho porque não há dia em que eu conheça o desânimo. As coisas podem não estar exatamente do jeito que eu queira, mas ainda sim eu sonho. Ainda assim eu mantenho a certeza de que tudo vai mudar, e que eu vou conseguir passageiros o suficiente para pagar as contas no final do mês.

Normalmente, em dias de vacas gordas, tenho um passageiro a cada meia-hora. Dirijo por toda a zona sul da cidade em busca do sinal de um transeunte ou espero o telefonema do passageiro. Conheço suficientemente bem a cidade, de forma que não demoro muito a atender a um chamado.

Em um destes dias, peguei uma passageira que me causou espanto. Foi a primeira vez em minha vida de taxista: Era meio-dia quando uma senhora de idade, muito perfumada e bem-vestida, entrou em uma parada na avenida da praia. Carregava consigo a tiracolo uma bolsa de couro, de onde retirou uma arma e me ameaçou.

Como de praxe, parei no calçadão e saí do carro para abrir a porta de trás do veículo para ela. Feito isso ela entrou e sentou-se atrás do banco do motorista. Eu perguntei a ela, “Para onde?” e ela me respondeu, “Vamos até o centro da cidade passando pela Vila Barbarela”.

Emendou a senhorinha, “Tenho que parar em Vila Barbarela para pegar um pacote de doces”. Respondi-lhe então que não gostava daquela região da cidade, onde era costume o assalto de taxistas. Ela redarguiu que não haveria de acontecer nada de ruim conosco, e que não se demoraria muito. Até aí, nada da arma da bolsa de couro.

Eu até então, como disse, nunca havia sido assaltado. Um ou outro colega contava estórias de assalto às duas horas da madrugada, quase nunca à luz do dia, e eu ouvia com atenção às narrativas que se resumiam em contar uma estória de prejuízo e pavor. Geralmente deixavam-nos ir com o carro, mas ‘davam uma limpa’ no caixa.

Dirigi atenciosamente até a Vila Barbarela, lá chegando seguindo as orientações da velha senhora. Dizia calmamente, “vire a segunda a direita”, “agora dobre a primeira à esquerda.” Assim fomos, subindo a encosta de um morro logo na entrada do bairro. Paramos em frente a um sobrado e a senhora desceu. Fez sinal que esperasse.

Durante vinte minutos esperei e não ouvi nenhum ruído vindo de dentro da casa. Cheguei até a acreditar que a senhorinha pudesse me dar um calote. Talvez tivesse fugido, passando pelos fundos do sobrado. Mas antes que decidisse ir embora, lá vinha ela, com um pacote grande embaixo de um dos braços.

“É doce de abóbora com coco.” “Se o senhor experimentasse este aqui, não comeria outro doce.” Foi quando me passou pela cabeça a possibilidade de estar fazendo a coleta de uma grande embalagem de drogas. Ao pensar nesta possibilidade, fiquei pálido e pus-me a gaguejar. “A-a onde va-a-mos?”

Ela percebeu meu desconforto e retirou um revolver de dentro da bolsa. Sentada atrás do banco em que eu estava, ela posicionou o cano da arma no lado direito de meu pescoço. Disse, com uma voz masculina, “Vamos em frente e sem nenhuma gracinha, Reinaldo” – acontecera que ele vira minha identidade no vidro da frente do carro.

A senhorinha então não era uma senhorinha; ela era um homem. E pela entonação de voz, estava ali para qualquer parada, ou seja, não custava nada e ela estourava os meus miolos. Procurei respirar bem fundo para manter-me calmo. Aos poucos fui me livrando da tensão. O importante seria que me mantivesse calmo.

“Pegue a rodovia, Reinaldo.” Eu assenti com a cabeça. Quis perguntar-lhe o nome, ao que riu sarcasticamente e me respondeu com sua voz masculina, “Meu nome é Marieta e não tente fazer nada que eu não lhe disser para fazer.” “Pegue a rodovia e seguimos em frente”.

Já na rodovia, fora da cidade, ele me forçou a parar o carro. Manteve-me ao alcance do revólver enquanto atravessou a pista e entrou em um outro carro. Mantive o táxi desligado enquanto a ação se desenvolvia. Na minha mente, minha querida esposa e meus dois filhos. Com eles bebi o sonho, para que aquele homem não me matasse.

‘Dona Marieta’ deu a ignição no carro e eu fiquei ali, perplexo ainda. A gente nunca se acostuma com um assalto. Ele me ferira na ingenuidade. Nunca mais esqueci aquele dia: Eu arrefeci o meu ânimo e todos os passageiros de ali por diante se tornaram assaltantes em potencial.

O homem travestido avançou com o carro e sumiu na direção contrária. O sol estava a pino no dia em que eu fui assaltado. Desde então, tornei-me paranoico com relação aos passageiros. E para driblar a fraqueza no momento do trabalho, suscitava a lembrança dos meus entes queridos, bebendo do sonho para labutar. Fazia por eles.

Eu não desisti de confiar em minha profissão, não desisti de confiar nos passageiros que coletava, mas confesso que sentia meu coração palpitar dobrado na proximidade de uma anciã que me acenasse da rua. Como encontrei receptividade em casa, fui levando adiante o meu dia-a-dia. Eu continuei bebendo do sonho – diariamente.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 22/08/2014
Código do texto: T4932739
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