Crepúsculo final 

     Berta percorreu a casa, abrindo todas as portas, naquele final de tarde. Olhou perplexa para o interior dos quartos com as camas bem arrumadas, as portas dos armários fechadas, as cortinas com as pregas dispostas de forma impecável.
Silêncio. A quietude grita em seus ouvidos. 

     Foi até a cozinha. A pia reluzente não abriga copos semi-usados, pratos sujos, panos amarrotados. Tudo está no lugar. 

     Tantos anos de dedicação. Berta ofertou braços, mãos, coração, incansavelmente, à família. Família que cresceu e que, aos poucos, foi minguando até deixá-la assim, sem ter o que fazer, sem ter a quem servir. Sem existência ou densidade, notou, nos últimos tempos, estar se tornando invisível. Como se só pudesse existir no olhar de alguém, como se o modo dela ser estivesse preso à palavra do outro, quando a descrevia. 

     Senta-se à mesa da cozinha com a caneca preferida cheia de café, sorve o líquido quente e olha o tampo da mesa; nele se insinua uma imagem, vagamente familiar. Fixa o olhar e com o coração confrangido descobre vestígios antigos da bela moça a se contemplar em qualquer superfície que lhe devolvesse o reflexo. Os olhos verdes, sempre profundos, agora mostram um travo de sabedoria amarga sem, no entanto, empanar sua beleza. 

     Berta volta no tempo e é, novamente, menina. O mundo inteiro era pequeno para suas curiosidades. Quais poderes da vida lhe confinaram naquela cidade, rua e casa por mais de cinqüenta anos? E agora, quando nada mais a prende, não encontra a saída daquele labirinto; não tem forças para procurar o fio de Ariadne. Melhor ficar assim como está cômoda e confortável, fazendo parte do nada, como um estojo oco, vazio. 

     De repente o relógio ressoa pela casa sete vezes. Berta se assusta com a primeira badalada, mas continua a contá-las até o número sete, então se levanta, apanha a bolsa, dentro da gaveta e abre a porta principal. Sai à rua e toma o primeiro ônibus que aparece. Nunca mais souberam de Berta. 

     Sobre a mesa da cozinha encontraram um bilhete, escrito em letra firme, dizendo: “Fui sem querer”. 


Célia Regina Marinangelo
05/2007