Ensaio de uma noite só (agosto de 2014)

Estacionei no acostamento e saí do carro assim que percebi o ricochetear do pneu esmigalhado. Provavelmente uma pedra solta do asfalto quente, ou uma lata jogada na estrada... o fato é que não daria para continuar dirigindo com o pneu estourado e por isso encostei na lateral da estrada. Acendi um cigarro.

Estava metido em uma enrascada: o pneu sobressalente furado havia meses e eu, sempre procrastinando, que me havia totalmente esquecido de trocá-lo. Dei uma longa tragada no cigarro e apaguei o que restava da guimba apertando a brasa usando a ponta dos dedos com cuidado. Tranquei então as duas portas do carro.

Era o fim da tarde. A noite deslizava silenciosa por cima de montanhas cobertas de capim e pontilhadas por cabeças de gado. No alto de tudo aves brancas mergulhavam no vazio sobre o vale, as montanhas e o carro. Tratei de pôr os triângulos sinalizadores na estrada, muitos metros antes e depois do carro. Pura precaução.

As aves no céu desciam e subiam, e as montanhas projetavam uma sombra sobre o que parecia ser um vale lá embaixo, próximo a uma pequena casinha de fazenda e um riacho. O conjunto de elementos pictóricos esboçava lindamente o conjunto de vale, casa, pasto e mata fechada; enquanto o lusco-fusco cedia lugar para a pesada treva.

Teria que procurar ajuda: saltei o meio-fio caindo sobre a vegetação, para ali encontrar uma pequena senda de chão batido com mato rasteiro por todos os lados. Calculei que me levaria montanha abaixo até a pequena casinha pictórica no fundo do vale. Enquanto eu caminhava, carrapichos grudaram em minhas meias e calças jeans.

Quando o pneu estourou, e tive de imediato que parar o carro no acostamento, meu destino era o ponto mais alto da serra: o Hotel da Fumaça, a aproximadamente cem quilômetros dali. Pela sucessão de acontecimentos, e a pouca probabilidade de encontrar um borracheiro ainda nesta noite, não chegaria como o esperado até lá.

Precisava de um lugar para dormir a noite e a casinha no fundo do vale era uma possibilidade. De longe se avistava uma luzinha amarela no meio da escuridão, o que dava algum alento para a caminhada dura por mato adentro. Sentia a mordida de mosquitos, mas a promessa de descansar um pouco me movia barranco abaixo.

Tive uma lembrança inesperada para aquela parte do mundo e àquela noite: meus pais cresceram em um lugar como este, assim como toda minha família. Minha mãe, Pepa, e meu pai, Joaquim, cresceram no interior em pequenas casas de fazenda. Estava havia quinhentos quilômetros daquela roça, mas isso não importava.

Mesmo a centenas de quilômetros de distância, a casinha lá embaixo e as outras casinhas pictóricas, as dos meus pais, – em direção oposta, no interior norte do estado – pareciam-se muito. Era o mato, era o pasto, era a escuridão que tomava conta de tudo, era o cheiro de cocô de boi, era o jeito de fazenda.

Mais mosquitos mordiam-me os braços, mas eu não me dava por incomodado. De fato, estava feliz por estar ali no caminho de chão batido em direção a uma pequena luz que me prometia um abrigo para salvar-me daquela escuridão que tomava conta de tudo. Estava sozinho, mas uma sensação muito boa tomava conta de mim.

Gostaria muito que minha mãe pudesse estar ali, para ver o que o acaso me reservara. Mas, o tempo que se passara desde o dia do suicídio até então marcara a ferro a ausência de minha mãe. Era-me impossível esperar que a velha Pepa reaparecesse como se por encanto para me ver – e quem sabe me dar um abraço?

Também Seu Joaquim foi-se embora – logo depois de Pepa, meses depois, - de um câncer tão inesperado. Em dois anos perdi meus pais e já faz cinco anos que a primeira se foi. Tamanha deve ter sido a tristeza do mundo para mamãe se suicidar. Tão grande a solidão, tão grande o pesar.

Só posso imaginar o porquê, mas não consigo compreender a razão que leva alguém – por qualquer motivo que seja – a retirar a própria vida. Minha mãe a encontrou, disse que havia muito sangue por todo banheiro, ao redor da banheira em que estava. Cortara os pulsos com cortes bem fundos, que era para ter certeza de não haver volta.

Quanto ao meu pai, sempre creditei sua morte à morte de mamãe. É como se seu câncer estivesse sempre ali, mas veio a tomar conta do corpo de papai só por causa da morte de mamãe. Acho que Pepa não aceitou deixar o marido para trás e chamou-o para se juntar a ela; e ele foi embora sem reclamar, pacífico, resignado e contente.

Um vulto enorme lançou-se sobre a minha frente, pesado, de pisar incerto, e muito assustado. Eu tremi dos pés à cabeça. Para mim, um malfeitor, alguém que se escondesse em matagais como o meu, que viria para me apunhalar pela frente, dando-me a chance de reagir. Mas, era apenas um boi assustado fugindo da noite.

Eu toquei no novilho, acariciei-o na cabeça e sobre as costas do bicho. Ele, não sei se em uma reação a mim, qual seja a natureza de um boi – o que sabe ele da vida? Ele mugiu e saiu em disparada em minha frente. Deixou para trás uma pilha de cocô, que saia de seu corpo fofo sem a menor vergonha.

Mamãe dizia gostar do cheiro de bosta de boi. Reflito o que poderíamos ter feito juntos enquanto ainda era viva. Mesmo essa casinha, a essa hora da noite, em meio a bois que dessem as encostas das montanhas depois de um dia de pasto, aqui nos divertiríamos os dois. Ou não.

Pessoas muito sensíveis como era minha mãe são inescrutáveis. Não há como prever o seu verdadeiro estado de ânimo. Um dia está aqui, sorrindo. No outro dia pode ter-se esvaído em sangue até a última gota, dentro de uma banheira branca. Não eram duas Pepas: era apenas uma e eu a conhecia bem. Mas era imprevisível.

Dizem que o tempo cura todas as feridas. No meu caso, ainda sentia com muita tristeza e saudade do hálito pesado de cigarros da boca de minha mãe Pepa. Mesmo ali, no meio de uma senda no meio do mato, a quilômetros de distância do túmulo de Pepa, o hálito de cigarros teima em invadir o meu nariz tão rico de imaginação.

Estava a um pouco mais de cem metros da casa, então ela foi ganhando contorno, ganhando dimensões reais. De longe, parecia muito menor. Lembrava de longe uma igrejinha. Aproximando-se dela, via-se que a construção era maior. Em frente e ao redor, muitos canteiros de flores. Todas brancas.

Tomei novamente um susto, quase caindo dentro da água. Havia o pequeno riacho que cortava o fundo do vale. Ele surgia no caminho como se viesse do nada, e era preciso atravessar uma ponte de madeira com corrimão trabalhado. Pensei, “se Seu Joaquim meu pai estivesse aqui comentaria sobre a arte incrustada na madeira.”

Saudades de mãe e pai... mas importante apressar-me para escapar dos mosquitos que me mordiam principalmente os braços e o pescoço. Era impossível escapar de suas mordidas, enquanto estava ali no meio do mato. Pensei no trabalho, do qual dependia minha presença aquela noite no Hotel da Fumaça.

Um seminário de final de semana no alto da serra: lugar de tranquilidade e um abrigo contra os mosquitos. Mal poderia esperar por um banho quente e aconchegante antes de dormir. Mas um bom chuveiro quente no vale me traria conforto do mesmo jeito e, foi pensando nisso que abri o pequeno portão e entrei no quintal da propriedade.

Bati palmas. Não havia campainha. Esperei por aproximadamente cinco minutos antes de bater palmas novamente. Nada. Sentei-me em um degrau da frente da casa e tratei de arrancar alguns carrapichos das meias. De fato, eu estava coberto de carrapichos nas meias e nas calças. Acendi um cigarro.

Esperei por alguns minutos, mas não ouvi nenhum barulho e, com a exceção das vacas ao longe, descendo ainda do pasto nas montanhas ao redor, nada se movia. Era uma noite sem lua, pude constatar ali sentado no degrau de piso de cerâmica. Havia apenas noite escura e uma brisa incapaz de mover a vegetação.

Era certo que não havia ninguém lá, apesar da luzinha acesa do lado de dentro. Algumas pessoas fazem isso com o intuito de afastar de casa os possíveis assaltantes que se aproveitariam de uma casa vazia, abandonada. Por isso a luz acesa sem ninguém em casa.

Suspirei e desejei suspirar o bafo quente com cheiro de cigarros de minha mãe. Lembrava-me nessa noite especialmente dela, trajando um vestido grande estampado com flores vermelhas enormes. Nos pés, vestia sandálias brancas de salto bem alto, abertas na frente por onde pareciam se projetar os dedos muito brancos.

Depois, eram as flores do caixão, minha mãe com os braços cruzados sobre as flores, um vestido escuro que poucas vezes eu a vira usar. Lembrei-me que talvez desejasse ser enterrada no vestido branco com flores vermelhas, mas era tarde demais. Papai pessoalmente escolhera o vestido azul-marinho para o velório. Mas isso é passado.

Estava distante de um mundo ao qual estava acostumado. Na capital, em situação semelhante, bastaria usar o celular para chamar o mecânico do seguro do carro. Mas, o que fazer ali, a cem quilômetros de distância de uma reserva de hotel em uma roça barrenta, longe de qualquer núcleo urbano de tamanho razoável para um borracheiro?

Se me pusesse a caminhar, após uma hora ou menos, poderia chegar a um lugar onde encontrar um borracheiro. Eram sete horas da noite e ali estava eu, exausto pela descida tortuosa através da pequena senda na vegetação, procurando encontrar forças para fazer todo o caminho de volta, para a estrada acima do barranco.

Pepa sorria para mim sentada a um canto de varanda em casa de seu irmão, meu tio Bepe. Estávamos na roça e, àquela época, não era ainda barbado. Eu tinha quinze anos de idade. Tio Bepe tinha uma roça de milho e uma roça de arroz que lhe dava muito trabalho e pouco dinheiro. Não sei por que me lembrei deste dia.

O gado havia passado perfilado em frente da casa, até a última cabeça, ao descer da montanha acima onde pastavam. O que me separava dos bois e vacas daquela pequena propriedade era o riacho e a pequena ponte sobre ele. Os animais mugiam e se apressavam em direção a algum lugar desconhecido para mim. Apaguei o cigarro.

Tio Bepe estava na ocasião do velório, e como todo mundo que estava presente na ocasião, evitava falar qualquer coisa. Queríamos todos evitar falar de suicídio. Da forma como nos comportávamos, tão civilizadamente, mamãe falecera de doença de chagas, algo que portava já havia muito tempo e para que não houve solução.

O pequeno riacho parecia parte de uma composição paisagística que imitava os arredores de uma propriedade japonesa. Era possível escutar o fluir das águas que atravessavam a propriedade, calmamente. Em minha cabeça, imaginei Dona Pepa com os pés no riacho, ao lado de um bonsai, apontando-o para mim – e estava linda.

Retirei do bolso o celular e senti que era inútil fazê-lo. Digitei um número qualquer e a resposta foi a esperada: nada. Estava muito distante de qualquer antena de transmissão de dados. Pensei em bater palmas novamente e me senti envergonhado por pensar em fazê-lo. Era bem claro que não havia ninguém ali para responder.

Coloquei uma folha das plantas de flor branca dentro de um lenço de cambraia que guardava no bolso da camisa – para lembrar-me sempre dali e de Pepa – já tomando fôlego antes de iniciar a caminhada barranco acima de volta à estrada. A única forma para encontrar ajuda, ou para passar a noite, era caminhar até a cidade vizinha.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 03/10/2014
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4985820
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