Uma voz e um violino





Um anfiteatro em festa e o mais novo talento - uma bela voz feminina. Nos bastidores, pode-se ouvir o burburinho. Aos poucos, todos se acomodam. A campainha dá o toque de silêncio. Um breve suspense no ar e a pequena diva entra em cena.
Num adágio, ela inicia seu canto. A orquestra virtuosa a segue com precisão e vagar. Afetuoso, o violino, em consonância com sua voz, é quase uma extensão dela. Pouco a pouco, a música entra em allegro e a interpretação da cantora é brilhante, vigorosa. As notas do violino fluem com a harmonia natural de um rio e a voz dela, nele parece flutuar. Os dois fazem uma dança sinuosa como se contornassem margens estreitas, que de súbito se abrem num movimento gracioso. A orquestra os acompanha, ora grave como a firmeza da terra, ora leve, apenas iluminando. Num crescendo, voz e violino se alinham e lá no alto, em uníssono revelam-se majestosos. A platéia em absoluto silêncio, extasia-se. Sublime harmonia a da música, feita de tensões e humores tão vários. A orquestra retoma seu pulso inicial num tom quase melancólico, todavia o violinista toca num tom acima do previsto. A cantora lança-lhe um  olhar breve, mas ele parece mergulhado em sua interpretação. Com técnica sua voz corresponde e o alcança e então, o violino em seu solo, por um momento  faz pequenas variações, fraseados delicados, magistrais. Surpresos, os músicos olham-se, aquilo não faz parte da execução e a orquestra, meio em desalinho, prossegue. Tudo volta ao normal. Lá dentro, uma pulsação que só ela ouve: seu coração marcando um compasso rápido, o medo de frustrar a expectativa do público e alguns já se manifestam com um pigarrear aqui, outro lá. A orquestra tenta dar continuidade, mas o violinista segue num ritmo cada vez mais acelerado. Aos poucos, suas notas vão cortando o ar, enérgicas, quase agressivas. Elas parecem simular a chegada de uma tempestade e ela, como folha que é levada pelas intempéries da natureza por fim, deságua num mar revolto e se perde em sua imensidão. O som do violino se sobrepõe àquele canto sedutor e como uma onda assustadora o engolfa - Ela já não sustenta a voz e se cala. Simultaneamente a orquestra toda silencia. O público observa atônito sem nada entender. Ouvem-se murmúrios inquiridores. Ela foca seus olhos num ponto cego, já não consegue encarar a platéia. Naquele momento, ela só pensa em sair da frente do refletor que incide a vergonha no rubor de suas faces. Nas fileiras mais distantes, risos isolados. Estranhamente, a sombra nunca pareceu tão acolhedora para uma estrela. Sua mão trêmula segura a cauda do vestido. Ela abaixa a cabeça em reverência ao público e rapidamente se retira. Pesadas cortinas de veludo se fecham. As luzes da ribalta apagam-se. No ar, um débil impulso de vida, quase noir; nem aplausos, nem vaias, apenas burburinhos de indignação, pedaços de frases que se misturam, algumas maldosas... devastadoras. Em choque, ela procura a porta de saída no fundo do teatro, mas antes, seus olhos transtornados, completamente inconformados buscam os olhos do violinista que embotados de tormento e lágrimas a observam, cortantes como navalha. Paixão cerebral e insólita. Amor cruel e voraz que na ânsia de um desejo desmedido, em ciúme e medo de perdê-la, pôs tudo a perder de vez. 



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Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 24/05/2007
Reeditado em 13/06/2007
Código do texto: T499901
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