O pichador de McDonald's

Não foi nada fácil conseguir a entrevista exclusiva com o famoso pichador de McDonald’s, encomendada pelo jornal semanal em que eu trabalhava. Ele estava em prisão preventiva num hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, e não tinha família além de uma afilhada que quase não o visitava; para piorar, não parecia consciente de sua situação, apesar de falar muito bem e ser extremamente culto.

A primeira coisa que notei, ao vê-lo ali, pequeno e franzino, de cavanhaque no queixo, usando antigos óculos sem hastes laterais e vestindo um tipo de fraque, foi seu olhar perdido. Na verdade não mirava meus olhos, mas era como se olhasse através de mim, para algo que se escondia por detrás.

Não sabia por onde começar, por isso ensaiei a pergunta mais óbvia:

- O que significa “Xeé Karuvaí*”, as palavras que o senhor escrevia em preto nas fachadas das lojas da rede McDonald’s?

Ele baixou os olhos e respondeu, quase num sussurro:

- Este país jamais terá a dignidade que merece enquanto se vender ao estrangeiro. Temos quitutes maravilhosos feitos com nossos legumes e nossas frutas nativas, além de uma culinária riquíssima. Não precisamos desse lixo importado.

- Mas o que...

- E além do mais – interrompeu o homenzinho, empolgado – não se vê mais nada nas ruas que não remeta ao exterior. Por que isso? Não é mais lógico dizer: “Estamos em liquidação” do que “Sale”, por exemplo? Pet shop... Haute coiffeur... Shopping center... Lan house! Maçante, irritante, angustiante.

-E quanto à palavra?

Exaltado, ele quase gritava:

- A palavra? Que palavra? O brasileiro não sabe mais falar. Desaprendemos o português e, pior ainda, a língua primeira dos verdadeiros donos destas terras. O tupi-guarani deveria ser o idioma nacional, jamais esses estrangeirismos com os quais somos bombardeados diariamente.

- O que significa, então?

O pequeno homem de cavanhaque se acalmou:

- Não significa nada. Hoje em dia, não significa nada ser patriota. Não faz sentido nenhum, nesses dias infernais, gostar das antigas modinhas e tentar recuperar o poder do violão, nosso instrumento mais caro. Hoje em dia só os sintetizadores, as músicas eletrônicas, o lixo cultural americano, as bugigangas chinesas. Somos uma ilha poluída de cultura, gostos e manias importadas. Há lugares nesta cidade em que as crianças comemoram o “Halloween”... pergunte aos americanos ou aos ingleses se eles comemoram o dia de Santo Antônio, São João ou São Pedro.

- Tudo bem, mas o senhor não respondeu à minha pergunta...

- Estude o tupi, meu caro. É uma língua rica, bela, pura. O senhor poderia fazer suas reportagens ficarem muito mais interessantes.

Vendo que não conseguiria nada além disso, levantei-me e ia saindo, quando ele me deteve com um sinal feito com a mão:

- O senhor acha que estou preso apenas por ter pintado as lojas do McDonald’s? Que sou considerado danoso por ter escrito palavras incompreensíveis maculando as belas fachadas das lanchonetes americanas? Ledo engano, caro jornalista. Minha prisão é um grande complô contra nossas raízes. A ideia é que o Brasil seja vendido, a preço de banana nanica apodrecida, à potência americana. Eu tento impedir isso mas há muito em jogo. Sou uma ameaça em potencial porque não tenho ambição política ou financeira; meu objetivo é simples, porém, em virtude de sua simplicidade, pode tornar-se extremamente perigoso. Sou um verdadeiro patriota e, portanto, um traidor. Por isso é mais fácil considerarem-me um reles maluco e deixarem-me apodrecendo nesta espelunca.

Olhei bem para ele, sem saber exatamente o que dizer; ia em seguida conversar com o médico responsável pelo singular homenzinho, mas ele se levantou, chegou-se bem próximo, segurou-me pela camisa e disse, muito baixo, em meu ouvido:

- Poderia, por favor, me trazer alguns livros, para tornar menos triste meu fim? José de Alencar, Gonçalves Dias... Porém, se não puder trazer-me essas cousas, peço apenas que divulgue meu protesto. Este país há de voltar a ser brasileiro. Ou não me chamo Policarpo.

Em casa, ao tirar a camisa, descobri um papelzinho dobrado no bolso. Nele, escrito com uma caligrafia rebuscada, estava a resposta à minha pergunta: “Xeé Karuvaí, esta comida é ruim”.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Encontro com uma personagem"

Saiba mais e conheça os outros textos acessando:

http://encantodasletras.50webs.com/encontrocomumapersonagem.htm

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* O apropriado comentário do Pedro Galuchi, abaixo, me fez notar que devia uma explicação. Em princípio, havia usado a palavra Embiubacaba, criada por mim e baseada em vocábulos da lingua tupi pesquisados de dicionários: embi, emb, em' =comida; iba, ité, iua = ruim; caba = lugar (lugar de comida ruim). A palavra foi, portanto, inventada, e não necessariamente está correta.

Porém bem depois da publicação, conversando informalmente com o escritor do Recanto HICS, este me prometeu ajuda para descobrir a forma certa de dizer o que almejava. E mais do que ajudar, solucionou o problema contatando um falante de tupi, o cacique, historiador e professor de tupi Robson Miguel, que muito gentilmente respondeu-lhe por email. Portanto, Xeé Karuvaí significa: esta comida é ruim. Obrigada, HICS!