494-SUSTO NA SOGRA - Crime ou acidente?

Antes, quando a sogra vinha visitá-los uma vez por ano, podia-se dizer que era ojeriza ou antipatia o sentimento de Joel para com dona Guilhermina. Mas era coisa passageira. A mulher chegava, ficava uns 40 ou 50 dias, e depois voltava para a fazenda.

— É só enquanto o Alberto viaja pra Goiás, comprando novilhos para engorda. — explicava.

Implicava com tudo e com todos.

— Joel! você precisa ir à missa com Jerusa. Que falta de religião, moço!

— Jerusa, estas suas blusas estão decotadas demais. Tou vendo quase tudo!

— Terezinha, cria modos! Fica mascando chiclete que nem boi no pasto!

Os hábitos da velha eram insuportáveis. Acostumada com a vida na fazenda, de amplos espaços, sentia-se presa no apartamento e fazia questão de manter os costumes da sua vida interiorana.

— Mamãe, já falei pra senhora deixar a roupa suja para a empregada lavar na máquina. Não fica estendendo calcinhas pra secarem no varal na área de serviço.

Joel aguentava calado aqueles dias de provação à sua paciência. Mas quando ficou viúva e veio de vez morar com a filha única, no apartamento suficiente apenas para o casal e a filha de treze anos, a situação ficou odiosa. A velha senhora nem era tão velha: estava com sessenta e oito e tinha energia e disposição pra dar e vender.

— É que não suporto aquela solidão da fazenda. Ficar sozinha lá seria minha morte.

Aboletou-se no apartamento, sem ser convidada nem saber a confusão que causaria. Joel, calado e aparentemente compreensivo, não negou guarida à sogra, por amor à esposa. Mas, desde o primeiro dia, começou a pensar uma forma de se livrar da terrível mulher.

Ela gostava de televisão. Horas e horas passava assistindo a TV e apreciava sobretudo os noticiários. Dos escabrosos gostava mais. Tragédias, desastres, acidentes, mortes, como adorava! E enchia os ouvidos do genro, da filha e até da neta com seus comentários e depreciações.

Por ocasião de uma série de desastres ecológicos mundiais, ficou toda ouriçada.

— Vocês viram o terremoto na China? Mais de sessenta mil mortos, trinta mil desaparecidos. Que horror!.

— Deu um furacão na lá Birmânia, matou mais de cem mil!

— Hoje a terra tremeu no Ceará. Deu na TV. Cruz credo! As desgraças estão chegando perto da gente.

Aprendeu tudo sobre como se safar de tragédias, desastres de carro e até de terremotos.

— Olha, se vocês sentirem a terra tremer, saiam correndo de onde estiverem, da casa, do escritório, vão pra rua. Se não puderem sair pela porta, pulem a janela, mas não fiquem dentro de casa de jeito nenhum!

Joel ficou observando a paranóia da velha com relação aos desastres.

É por aí que me livro dela, pensou.

E dava indiretas que nem tão indiretas eram.

— Se eu pudesse, iria morar no interior. Na fazenda. Lá é tudo tão calmo. Aposto que nem tremor de terra acontece por lá.

De maneira sutil, foi conduzindo a atenção da sogra para os terremotos, reforçando a ideia de que era um perigo iminente, que deviam mesmo ficar muito atentos aos menores sinais.

— A senhora tem razão. — Disse-lhe. — O Pessoal do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil está alertando para o perigo de termos terremotos até aqui em São Paulo. É preciso ficar muito alerta. Qualquer barulho suspeito, é correr pra rua.

— Pois comigo, não, assombração! — a velha respondia, no seu jeito caipira de falar.— Ao menor sinal, saio correndo que nem corisco.

— Melhor voltar pra fazenda. Lá não tem perigo algum.

Mas a velha não entendia.Ou, se entendia, fingia que não era com ela.

Ao assistir o noticiário da tarde, Dona Guilhermina geralmente cochilava no meio do programa. Por diversas vezes, após o almoço, o genro encontrou-a escarrapachada no sofá, às vezes até de forma indecente, a TV ligada, as tragédias se sucedendo.

Tarde de calor. Após o almoço, estavam apenas Joel e a sogra no apartamento. A esposa tinha saído, a filha estava no colégio e a empregada, terminado o serviço, se mandara.

Dona Guilhermina assistia o noticiário da TV e como de hábito, entrou no cochilo.

Vou dar um susto na velha, pensou Joel. Só assim ela volta pra fazenda.

As cortinas balançavam-se com uma aragem que entravam pela janela do apartamento, no décimo andar. Ao lado da porta, uma estante de madeira era um verdadeiro mostruário de bibelôs, vasos de vidro colorido, pratos ornamentais, de louça — essas miudezas que vão se acumulando em qualquer residência, com o passar dos anos.

Joel fechou todas as portas que se abriam para a sala, tomando cuidado para não acordar a dorminhoca. Colocou uma cadeira de pernas pro ar, outra deitada no chão. Esparramou as almofadas de forma bizarra. Caminhou lentamente até o centro da sala, deu impulso no grande lustre de peças brilhantes, que ficou balançando, pra lá e pra cá; colocou a TV em um canal sem programa, a tela emitindo aqueles zig-zags acinzentados.

Dirigiu-se para a estante. Com as duas mãos, levantou uma das extremidades da peça e a soltou de repente. Ouviu-se um estrondo, as peças caíram das prateleiras, quebrando-se e fazendo um barulho terrível.

A velha senhora acordou da soneca, assustadíssima. Olha para a TV, para o lustre balançando, as cadeiras viradas, as almofadas no chão. Olha desesperadamente na direção das portas. Fechadas. Vê o genro parado. Grita:

— Corre, Joel! A terra tá tremendo!

Sem esperar resposta, desvairada e desesperada, sai em disparada na direção da única saída da sala: a janela, através da qual pula, despencando-se do décimo andar.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 17 de Maio de 2008

Conto # 494 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/11/2014
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