O RELIGIOSO

(Inspirado numa narrativa de domínio público)

Em certo lugar, houve uma enchente muito grande e um homem ficou preso em meio à inundação, agarrando-se aos galhos de uma árvore que não havia sido totalmente encoberta. E embora as águas não parassem de aumentar, o homem conservava-se calmo. Era ele bastante religioso e orava ali na certeza que Deus não iria lhe desamparar. Próximo dali, em um local seguro, mas angustiados alguns de seus irmãos de religião, presenciavam a cena fazendo, também, orações. Acreditavam ser esta a única forma de ajudá-lo naquela situação. Não demorou muito quando, um conhecido seu, surgiu tentando lhe socorrer. Da beira do alagamento, arremessou-lhe uma bóia presa a uma corda capaz de resgatá-lo. Porém, o religioso, ao reconhecer o seu provável salvador, não gostou. Tratava-se de um membro de uma seita pagã. Decidiu, portanto, não aceitar o seu auxilio. Disse-lhe: "Não se preocupe, eu já tenho quem vai me tirar daqui. Obrigado". E a pessoa foi-se embora. Veio, em seguida, outra em um barco, oferecendo-lhe igualmente o socorro. Coincidentemente o religioso também a conhecia e muito. Era ela um cidadão ateu para o qual ele tentou muitas vezes convencê-lo da existência de Deus sem obter, todavia, êxito algum. Então, refletiu: "O que os meus irmãos de fé não pensariam ao saber que eu fui salvo por um desses sujeitos? A minha sorte é que já os conheço. Primeiro veio um idólatra, agora vem um ateu... não sei quem é pior! Não, não vou aceitar. Depois, qualquer um dos dois que me salvasse, estaria humilhando até a minha crença". E da mesma forma que fez com o outro, recusou deste a ajuda. Finalmente apareceu um helicóptero salva-vidas, de onde lançaram um cabo para recolhê-lo. Entretanto, mais uma vez, o homem negou-se a ser ajudado. É que desta vez, ele percebera que a aeronave que lhe prestaria o socorro era doação - estava claramente estampado na fuselagem - de uma empresa de bebidas alcoólicas, o que fez concluir: "Vê lá se o meu Senhor iria socorrer-me logo nisto! Tudo só pode ser armação do demônio, mas está 'amarrado'!" Para ele, a providência divina salva-lo-ia de outro modo. A ajuda dos céus ainda estava por vir. Acreditava que, em breve tempo, o Todo-poderoso, atendendo às suas súplicas, poderia até cessar o aguaceiro e, com a redução dos níveis d'água, a sua saída seria tranqüila. Mas, infelizmente, isso não aconteceu. a enchente não parou e aquele homem acabou, coitado, morrendo afogado.

No outro mundo, muito inconformado, ele encontrou-se com Deus. E logo quis saber o porquê do Todo-poderoso não tê-lo acudido. Deus, então, lhe explicou: "Filho: eu tentei três vezes lhe socorrer, mas o seu preconceito não deixou." Ainda inconformado, ele tentou se justificar: "Mas, Senhor, aqueles dois..." Foi quando o Pai Eterno o interrompeu, esclarecendo: "Aqueles dois são também filhos meus e por serem benevolentes para com o seu semelhante, os considero como filhos queridos. O que importa para mim, não é a sua religiosidade mas o amor que trazem dentro do coração. Logo o crente, como bom leitor das Escrituras que fôra, lembrou-se dos versículos que falam a este respeito mas, nos quais, ele nunca meditou. Quis ainda tirar outra dúvida de algo que estava igualmente lhe intrigando. Perguntou: "E as preces que os meus irmãos fizeram em meu favor, por quê de nada valeram?" E mais uma vez, com a sua santa paciência, o Divino respondeu: "Seus irmãos poderiam ter feito muito mais além de orarem, mas sentiram-se incapazes. Olhe, filho: quem confia em mim de verdade, não pode ter nunca receio de nada. A fé deles foi insuficiente, de maneira que eu não pude ouvi-los." O homem abaixou a cabeça, pensativo. Aí um anjo, que ali estava, bateu-lhe no ombro, dizendo: "Alegria! Você acaba de ter o privilégio de falar frente a frente com o Eterno." E com delicadeza o conduziu para fora daquele sagradíssimo local.