499-DIAGNÓSTICO DE MÉDICO RESIDENTE- Biografia de minha espôsa

— Ai, Ai, Ai! Não agüento mais de dor. Me leva pro hospital.

Peguei apenas documentos, dinheiro e um agasalho. Enny entrou no carro que manobrei, saindo da garagem e indo direto para o pronto socorro do hospital Felício Rocho. O relógio da sala de admissão marcava uma hora e vinte e cinco minutos da madrugada de sábado.

Respondi ao questionário feito pela atendente, assinei meia dúzia de formulários, enquanto Enny esperava pelo atendimento, sentindo dores agudas. Somente quando ela foi levada para a enfermaria retirei o carro da rampa de acesso, estacionando-o do outro lado da rua.

Lembrei-me de que logo após o almoço, minha esposa começara sentir uma leve dor no abdome que tentou aliviar tomando pequena dose de bicarbonato. Inutilmente. Pelas quatro horas, a dor intensificara, porém não a ponto de impedir que ela ministrasse a aula semanal de inglês para Lúcia, aluna particular. À noite, tomou uma dose de Buscopan, por volta de 21 horas. Vomitou em seguida, e desde aquele momento, as ânsias de vômito expulsavam tudo o que tentasse tomar: água, medicamentos, um chá erva-doce. Tudo voltava.

A dor aumentando sempre, se espalhou pelas costas, à altura dos rins. Não conseguia ficar deitada nem sentada. Caminhava pela casa, colocando as mãos na barriga e à altura dos rins. Por volta da uma hora, levei-a ao hospital.

Estacionei o carro numa rua lateral e voltei ao pronto-socorro, onde ela já estava instalada na sala de emergência, sentada em poltrona reclinável, recebendo soro e sentindo os efeitos dos poderosos medicamentos injetados diretamente na veia. Sonolenta.

Havia sido entrevistada pelo médico de plantão, residente jovem, que determinou os medicamentos de emergência. Ele havia dito que se tratava de possível crise de vesícula biliar, cujas cólicas são bem características, espalhando-se do lado direito do abdome por toda a barriga e até as costas.

Uma hora após, tendo vagado um leito, foi transferida para a enfermaria. O local era amplo, com 15 leitos, separados por cortinas pendentes do teto. Um lugar de permanência rápida. As luzes permanecem acesas durante toda a noite. Também por toda a noite é o vai-e-vem constante das enfermeiras, dos médicos residentes e plantonistas, dos pacientes e acompanhantes.

Enny cochilou um pouco, entre três ou quatro ânsias de vômito. Como já não havia mais nada no estômago (sua última refeição havia sido o almoço da véspera), o vômito era doloroso e devolvia apenas um liquido amarelado, em pouca quantidade. Pelas cinco horas, tendo terminado o soro e sem dores, Enny recebeu nova visita do residente, que lhe deu alta, indicando uma ultra-sonografia geral do abdome, para um diagnóstico exato.

Em casa, ela ficou repousando. Tomou umas colherinhas de chá, o que lhe causou nova ânsia. E pelo resto do dia permaneceu descansando, recostada na cama ou sentada no sofá, vendo TV.

Todas as tentativas de ingerir líquido resultavam em vômitos. Comer, nem pensar.

— Não agüento. É como se tivesse uma bola de alimento aqui na garganta. — Ela dizia.

Consegui marcar uma consulta para fazer a ultra-sonografia para quarta-feira, as sete da manhã. Em nenhum laboratório havia possibilidade de realizar este exame com mais brevidade. Mesmo porque havia a necessidade de preparo cerca de 24 horas antes.

O restante do sábado Enny passou entre tentativas de ingerir líquidos e vômitos sucessivos. À noite, já estava fraca. Com muita dificuldade, ingeriu (em colheradas, e entre 18 e 23 horas) um copo de soro caseiro, feito pela Denise. Na madrugada, mais vômitos.

Domingo foi um dia de luta: eu obrigando-a a tomar soro caseiro e farmacêutico, água de coco, e a ingerir gelatina. Inutilmente. Tudo o que Enny tomava ou comia, voltava no ato. Embora não sentisse mais dores, enfraquecia a olhos vistos, devido aos vômitos.

Mauro, que é nosso sobrinho e cardiologista, com livre trânsito no Felício Rocho, conseguiu uma consulta com o doutor Magnus Ribeiro, gastrologista, para segunda-feira à tarde. Tal qual o médico residente no sábado, aventou a possibilidade de ser pedras na vesícula a causa da crise inicial. Mas ignorou os vômitos freqüentes, recomendando apenas que tomasse soro caseiro ou manipulado em farmácia, e comesse pelo menos gelatina. E como já estava marcada a ultra-sonografia para quarta-feira de manhã, nada mais a fazer senão aguardar.

Segunda à noite e terça durante o dia decorreram como os dias anteriores: tentativa de tomar algum líquido (sólidos, como gelatina, ou sopas ainda que ralas, causavam repugnância) e vômitos conseqüentes. Na terça feira à noite Enny deveria se preparar para o exame ultra-sônico, ingerindo Lacto-Purga e Luftal. Não conseguiu: vomitou tudo. E, o que agravava a situação: estava vomitando um liquido espesso e quase negro, em grande abundância.

— Já está vomitando material do intestino. — Informou-me Mauro. — É grave. Vamos providenciar sua internação no hospital.

Na quarta-feira, às sete da manhã, levei Enny novamente para o Felício Rocho. A internação teve de ser feita após passagem pelo pronto-socorro, para exames preliminares. Não havia apartamento vago no hospital e Enny permaneceu no pronto socorro (cujo desconforto já comentei linhas acima), tomando soro, sendo interrogada, apalpada e auscultada por cada médico de plantão que passa pelo seu leito. Não existe uma planilha ou um registro que sintetize a situação do paciente. No final, Enny já havia respondido por mais de dez vezes, para plantonistas e enfermeiras, as mesmas perguntas, que começavam assim:

— Dona Enny, por que é que a senhora está aqui?

Ela me confessou que teve vezes em que quase respondeu:

“Estou aqui a passeio” ou: “Meu passatempo é passar a noite em pronto-socorro.”

O exame de ultra-som foi feito às onze horas, entre uma vomitada e outra. Parece que não se chegou a um consenso, pois as imagens não eram precisas. Foi marcada uma tomografia (exame de altíssima precisão) para as 19 horas. Enny, que passou a tarde com ânsias secas (agora, já não havia mais nada para vomitar, nem mesmo nos intestinos), conseguiu ingerir 5 copos d’ água com contrastante, para este exame.

Não ficamos sabendo do resultado deste exame. Às duas horas da madrugada de quinta-feira, um novo residente chega e começa o questionário — “o que a senhora está fazendo aqui, etc., etc...” . Quando falamos do ultra-som e da tomografia, exames já realizados, quis examinar os resultados mas... não os localizou. Após uma hora de buscas, sem êxito, determinou :

— Vamos fazer um Raios-X.

Feito o Raio-X (o mais elementar exame através de aparelhos), cerca de 40 minutos após, brandindo a chapa em nossa presença, disse com segurança:

— É uma obstrução intestinal. Vejam aqui na chapa (e indicou com o dedo uma mancha branca no centro da radiografia). O intestino está obstruído. É caso de cirurgia.

A partir deste diagnóstico, tudo se modificou. A equipe de “gastro” do hospital foi chamada, novos exames de sangue foram feitos e marcada a cirurgia para a noite. E um apartamento vagou, para o qual Enny foi transferida no início da tarde.

— Felizmente, ela não teve febre. Mas a causa da obstrução pode ser grave: um pólipo, ou uma verticulite. Ou até mesmo um tumor. — Doutor Mauro me informou. — E cirurgia nos intestinos é complicada. Esteja preparado.

Enny foi encaminhada par a sala de cirurgia às 19 horas. Ela disse que a última hora que viu no relógio foi 19:20. Permaneci no apartamento, à espera de notícias. Às 21 horas, o cirurgião-chefe veio me comunicar que a cirurgia estava terminada, durara apenas uma hora e meia e que se tratava apenas de uma alça que o intestino fizera em si mesmo, não tendo sido necessária nenhum incisão ou corte no intestino.

Pouco antes da meia noite, Enny voltou ao apartamento. Estava ainda muito sonolenta e o resto da madrugada passou assim.

Ficamos no hospital até terça-feira de manhã, após o funcionamento dos intestinos, com flatulências e defecções alegremente comemoradas.

Em resumo: um situação aparentemente complicada para os especialistas, que recorreram em primeiro lugar aos exames mais sofisticados, cujo diagnóstico foi feito acertadamente por um médico residente, sem nenhuma especialização, mediante a verificação a olho nu, de uma simples chapa de Raio-X.

E a obstrução intestinal sofrida por Enny é o que antigamente se chamava de “nó nas tripas” . O que , dentão, era resolvido com uma simples lavagem intestinal.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 17 de junho de 2008

Conto # 499 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/11/2014
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