Monólogo de velocidade - Parte I

"...Ao meu único fruto, deixo-lhe todas as minhas riquezas ao qual tenho a certeza de que usufruirá com prudência, fazendo delas ainda maiores pelos princípios certos. Deixo-lhe também a gata negra, ao qual carrega muitas das memórias familiares de anos bons e também de anos trágicos...". É seu desgraçado, carrega a minha mãe nele.

Lia aquele testamento com rancor, mas ainda sim eram as palavras do meu pai ali. Aquele velho! Porquê tinha de estar triste por sua morte? ...Humpf, agora era passado, eu sabia disso, mas ainda sim não conseguia perdoa-lo totalmente.

Desliguei o motor após ler aquelas últimas linhas. Meu velho caminhão de reboque sacudira-se com quem ele carregava. Incrível como até um caminhão não ia com a cara daquele carro. Outro desgraçado. Eu estava estacionado em frente ao penhasco. Estava Decidido. Daria um fim a aquela maldição dos anos 60. Estava mais do que na hora de morrer também.

Desci do caminhão, amassando o testamento e jogando dentro da felina, que engoliu o papel em sua escuridão metálica. Tudo naquele carro era selvagem e lindo. Não havia faróis expostos, mas quando era ligado dois olhos brilhantes de raiva surgiam de seu para-choque. Tolos foram os que achavam que esse carro não podia ver. Um desses fora meu pai. Eu a desci e dei uma boa olhada para ela, reparando em todos esses detalhes. Tinha que enfrentar meu inimigo cara a cara, sem truques, sem medo, sem misericórdia. Provaria naquela noite que não era ela quem controlava, mas sim eu. Não erraria com ele, o carro, ou com ela, a felina, seja lá o que ou quem fosse aquela maldição.

Pus a prancha de reboque inclinada. A traseira negra e prateada da felina quase encostava no chão. De roda em roda tirei as cordas que mantinham suas garras emborrachadas presas. Eu agora a descia ao chão, mas ela ainda não estava totalmente solta. Me ajoelhei a sua frente, olhando bem dentro daqueles olhos invisíveis, escondidos nas linhas pretas de sua frente. Me aproximei, minhas mãos percorreram pelos seus dentes frios e de lado a lado eu os desamarrei. Serena, ela sabia o que lhe esperava, o que eu pretendia... Poderia facilmente cerrar meus braços em sua saliva oleada, mas resolveu esperar. Não teria graça acabar com tudo ali, não daquele jeito. Tinha que se mostrar. Mostrar o seu poder total.

Me levantei e devagar fui passando minhas unhas nas curvas do carro até a porta do motorista, deixando meu rastro de raiva arranhado na pintura preta metálica da felina. Meus gestos de raiva sobre ela, era o carinho das suaves mãos de minha mãe, pobre mãe, que fora levada pelas falsas palavras ronronadas à ela. Eu não me enganaria naquele momento. Entrei no carro e virei a chave, mas em vez de um suave ronronado que outrora eu conhecia , lá estava a raiva alcoólica dela. A gata negra acordou através de um enfurecido rosnado, quase como o rugido de um leão demonstrando seu poder no reinado. Tentei me manter sem medo, mas lá estava minha primeira fraqueza, um grande susto transformado em um pulo. Saí do carro, caí no chão. Meu coração dizia para parar com aquilo, deixar aquela lata velha apodrecer amassada e esquecida no penhasco. Ele batia forte em seu pedido, mas eu não podia deixar a felina sair de tudo o que fizera, sem antes saber quem realmente comandava.

Do chão úmido daquela noite cheia de ventos frios, eu ouvia os risos contínuos da gata negra. Levantei como uma criança emburrada pronta para demonstrar o contrário. Dei passos firmes em direção ao interior de couro preto daquele animal. Sentei e fechei a porta com toda a força. Ouvi um certo lamento metálico e dessa vez era eu quem ria. Minha mão esquerda se apertou na cabeça da marcha, impedindo que qualquer ideia de insolência contra mim fosse expressada. Meu pé se fincou fundo na embreagem como uma lança que adentra o coração de um demônio. E assim, com um rápido movimento a ré estava engatada.

Acelerei, sem me desfazer da lança que fincara. Mais uma vez o rugido felino se expressava diante de mim. A leoa estava a minha frente, com sua boca extremamente aberta jorrando seu bafo alcoólico nas minhas narinas, mas eu tinha suas rédeas. Apertava e apertava meu pé no acelerador, afundando a alavanca da forca que daria o veredito de morte sobre a gata negra no momento certo. Mas ela se regozijava com aquilo. A cada vez que eu acelerava, ela se sentia mais forte e com mais fome. "Huuungry...Huuungry...". Se ficasse mais um pouco naquilo, seria engolido ali mesmo, seria levado pelo desejo do poder da felina. Então a lança foi retirada de seu coração e a fera demoníaca teve forças para se movimentar. Sangue em forma de fumaça jorrou e ela gritou da areia até o asfalto.

Freio.

Na estrada não havia nada além de raiva e fome. A rua corria extensa e desértica sobre a forte luz da lua. Naquela noite nós eramos o segredo daquele astro, daquele satélite ao qual detinha os mais secretos e estranhos segredos que nem mesmo o mais poderoso governo pudesse saber.

Ponto morto.

Álcool queimado de espíritos do passado caíam sobre a rua como um manto translucido, o tapete "vermelho" dos desajustados. Dos insaciados, dos desacreditados, dos perdidos, dos distraídos, dos sequestrados, dos cansados... Dos inocentes. Felina respirava aquele ar, caminhava com elegância sobre aquele tapete, se alimentava de suas memórias e ficava cada vez mais forte com cada uma delas.

A lança ficou, a primeira estava engatada. Retirei-a novamente, sem piedade de sua dor, o seu ponto fraco estava ali, a sua tortura estava ali e eu estava me alimentando dela. Quase ao mesmo tempo, acelerador... Felina gritava de novo. Sua fúria podia ser expressa agora contra minha insolência.

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João Matheus NS Pinto
Enviado por João Matheus NS Pinto em 09/11/2014
Reeditado em 15/11/2014
Código do texto: T5028487
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