L

Estava exausto, foi mais um dia desses. Sem emoção ou qualquer coisa que animasse um ser vivo, novamente a rotina o engolira. Mais uma noite pensando sobre o seu valor e sua vida, que tão medíocre é, mas tão que nunca consegue se concentrar firmemente em suas memórias. Uma vez viu um filme, muito semelhante a sua cabeça, mas que loucura, era apenas mais um filme de ficção científica para nós, leigos.

Tudo parecia tão branco e claro, chegava a cegar. Suas pupilas estavam cada vez menores, mas era apenas o efeito das pílulas que tomara para ter uma noite encantada. Havia chegado fazia poucas horas, tinha saído do curso de fotografia que estava fazendo há mais ou menos três meses. Imaginava que fosse algo mais profundo do que simples flashs, paisagens e modelos. Vivos ou mortos, todos tinham a mesma intensidade. O tempo parado sobre nossas cabeças, como se não houvesse mais nada além daquele momento. Não era o que esperava. Queria mais, muito mais. Chegar ao topo de si mesmo, quem dera. Se descobrir em suas entranhas, saber que seu sangue corria por suas veias, levando um comunicado a cada parte de si próprio. Não era o tempo ou a paisagem que desejava dominar. Seu próprio interior já bastava.

Mas nem isso podia alcançar, era um fracassado. De que basta ter uma vida comum e rotineira, sem algo que possa se orgulhar? Seus certificados na parede não o traziam nenhum orgulho, nenhuma satisfação. O diploma que conseguiria daqui um ano e meio, não o deixava ansioso. Ainda questionava-se o que fazia ali, naquela cidade fria e solitária. Estava bem do jeito que era, observando pessoas durante o dia, tendo contato com alguns colegas, e a noite analisando seu ego. Mas ainda queria mais. Suas noites acompanhado costumavam ser esporádicas. Dormia tarde, seu corpo estava acostumado com as três pílulas mágicas, sonhava pouco. Nunca se apaixonou, sempre se aventurou em relacionamentos confusos, mas nunca se entregou. Vivia numa constante guerra entre sua vontade e sua necessidade. Jamais quis usar as pílulas, sempre precisou. Jamais necessitou noites luxuriosas, sempre usufruiu por desejar sensações novas.

Não é tão fácil assim explicar o que sentia, não podia conhecer uma pessoa que logo se interessava, e fazia de tudo para se aproximar até conseguir o que queria, e quando conseguia sentia-se deprimido. Piscianos não são seres tão simples.

Adorava misticismo, quando adolescente provou varias seitas e religiões. Jogou sua fé a todos os lados, e sempre expunha sua crença. Hoje é uma pessoa cética, depois dos dezoito jogou fora toda a fé que o sobrava, nem mesmo nos sentimentos acreditava. Despreza as pessoas sem querer, por não saber demonstrar qualquer sentimento, não saber provar sua existência. Não bastavam palavras, eram necessários atos, atos que ninguém entenderia. Atos que poderiam ser considerados loucura, obsessão, paranóia. Louco, obsessivo e paranóico.

Era manhã de sábado, e Luana tinha acabado de chegar em casa. Seus dias costumavam ser assim. Trabalhava durante a madrugada, estudava a noite. Passava o dia dormindo, e em seus momentos de insônia ia caminhar pela cidade. Não optou por um emprego no qual não fosse necessário contato direto com pessoas, afinal era apenas mais uma jovem moça carente, em busca de atenção. Vivia em seu apartamento com sua amiga. Mal a via. Conheciam-se desde os doze anos de idade, as duas tinham sonhos muito diferentes, enquanto Luana queria viver em meio de pessoas que a quisessem bem, Tália procurava se isolar, era difícil, fazia um curso comum e trabalhava como vendedora em uma dessas lojas famosas de shopping. Ambas cursavam psicologia, estavam no segundo ano.

Luana, ficou órfã de pai e mãe aos dez anos, a partir de então passou a ser criada por uma família adotiva. É engraçado, dois anos depois de estar com essa família, seu pai e seu irmão postiço tiveram a sorte de estar em um condomínio comercial requintado, que chamou a atenção de três jovens e armados larápios. Bastaram menos de três tiros de cada para que metade da recém formada família fosse sepultada com belos lírios e gerânios brancos. Restaram apenas Luana e Celina, sua mãe adotiva. Durante os dois meses do tratamento psicológico de Celina, Luana passou no mínimo quarenta dias na casa de sua vizinha Márcia. Conheceu Tália, uma garota um ano mais velha que ela, que acabou dando-a atenção que desde seus dez anos não recebia.

Ainda sua família adotiva sendo extremamente caridosa, Luana não se sentia confortável. Tália era a irmã mais velha que nunca teve. A partir desse momento, se tornaram inseparáveis, cresceram tão juntas que acabaram completando uma á outra, e mesmo que todos desconfiassem, nunca houve um relacionamento além da fraternidade eterna que sentiam.

Tália era uma garota excêntrica, sofria de anorexia e sempre odiou a vida. O que ainda a segurava, era sua irmã de alma, sabia que sem ela, Luana não teria condições de seguir em frente. Bastaria uma mudança e tudo já estaria feito. Não que ela não precisasse de Luana, ela precisava, e muito, já que era só ela que depois do breve efeito das bebidas e drogas decorrentes a fazia se sentir bem, era bom saber que se importam com você. Mesmo sendo uma única pessoa, bastava ser a mais importante. Nunca se apegaram a coisa alguma, nem se permitiam. Luana não desejava novas perdas, Tália não queria novas decepções, pais mortos podem ser melhores que pais violentos, mães mortas ou adotivas, melhores que as submissas.

Estavam sendo uma tortura os últimos dias, para as duas. A loja estava terrivelmente movimentada com a nova estação chegando, o calor e aquelas mulheres sedentas por novos panos em seus ridículos armários abarrotados. A agência de telefonia, cada vez menos requisitada, dando a sensação de abandono e desleixo as noites se tornaram mais longas, os dias também. Era o caos! O ultimo prelúdio para a próxima desgraça.

Após as confortáveis pílulas, pelo menos deveriam ser, naquela noite veio o desespero. Várias fotografias ao chão, a fumaça de um incenso novo no ar, a música e os berros do apartamento ao lado. Será que elas não se tocavam? Eram quase seis da manhã e ele precisava dormir, dali a poucas horas iria fotografar um cemitério e nele algumas garotas, iria ser seu primeiro projeto. Pretendia mostrar a todos o que a fotografia representa para sua cabeça. Mesmo com o contraste vida e morte, nada disso iria aparecer em suas fotos, somente corpos – belos corpos - lápides, grama e cruzes. Mas se continuasse esse estardalhaço ao lado não daria certo. Resolveu bater á porta, “São seis da manhã, vagabundas! Vão dormir, parem de trepar com o som tão alto!”. Pouco antes de chegar à porta de seu apartamento ouviu uma explosão – seria um tiro? - um grito, horrível, e não transmitia o que pensou há pouco. Foi mesmo ver o que acontecia, pegou sua câmera fotográfica e bateu á porta.

Luana tinha acabado de chegar no prédio, cansada. Tinha sido uma noite difícil, quase não recebeu chamadas naquele dia. A volta pra casa foi um tanto quanto pavorosa para ela e seus traumas. Alguns bêbados, drogados e meliantes estavam na rua. Mas nada de muito grave, não estava em risco. Abriu a porta da entrada principal e subiu correndo, queria logo o colo de sua irmã de alma, sentir se confortada. Logo que girou a chave ouviu o som alto. Sabia que era Tália, e que algo de ruim estava acontecendo. Não era comum o som tão alto e expressivo à uma hora dessas. Devia estar sendo uma noite difícil para Tália também, apressou-se mais ainda, chegou ofegante, suada. A porta estava semi-aberta e de longe se sentia o cheiro de vodka, cigarro e qualquer outra coisa. Tália estava em crise, estava caída no chão, bêbada, alucinada, chorando. Seus braços estavam sangrando e o telefone fora do gancho. Notava-se nitidamente que alguém esteve lá.

O pai de Tália, era um vagabundo, abusava dela desde os sete anos, e somente aos onze, que a dona Márcia, a covarde, separou-se dele. Ele esteve lá, e ameaçou Tália, a mãe e a “namoradinha”. Ainda tentou agarra-la a força, mas ela não era mais nenhuma menininha de nove anos. Pegou uma faca, e ao invés de feri-lo, passou duas vezes em seu braço “Se eu for embora, você não vai poder fazer mais nada. Se eu for embora...Ninguém mais vai sofrer!”. Aos berros, as lágrimas rolavam, ao contar tudo a Luana. Indignação. Com Tália, com o pai dela, com o mundo. Principalmente com Tália “Ninguém mais vai sofrer? E eu?” Uma berrava mais alto que a outra. Tudo girava, o álcool no corpo de Tália pulsava forte, levava-a aos pensamentos mais insensatos. Luana soluçava agora, as duas estavam cansadas de tanto sofrer, as duas queriam, precisavam uma da outra mais do que nunca. Todos os fantasmas estavam de volta, todas as verdades que estavam adormecidas, as dores que ninguém além delas conhecia. Já eram seis da manhã, Luana, Tália. “A gente já sabe que amanhã vai ser igual! Que as pessoas não vão se importar! Você também não precisa mais de mim!...” “Cala a boca! Você sabe bem o quanto eu preciso de você! Você sabe onde eu estaria sem você comigo!” “Não! Você não sabe como tem sido a minha vida desde os sete anos! Meu inferno, minha desgraça!” “Você não sabe como é o meu inferno! Perder todo mundo que eu amei! Você tá sendo a minha exceção!”. Uma arma é tirada debaixo do sofá, devia estar lá há algum tempo. Com dificuldade, Tália a põe em sua cabeça “Não sou mais!”. A explosão de cores. Com sentimentos jogados fora para toda a eternidade. Nunca nada tinha sido tão forte. Nunca Luana tinha perdido tantas coisas ao mesmo tempo.

Perdeu seus sentidos dessa vez, quando se viu estava no apartamento á frente, com alguns para-médicos e policiais a sua volta. Mal se lembrava do que aconteceu, não queria lembrar. Não era fácil acreditar, que aquela ultima cena em sua cabeça era mesmo real. Tália nunca faria isso com ela. Ou faria? Alguém viera lhe trazer um copo d’água. Não dava, era difícil de engolir tudo aquilo. Viu um rosto conhecido, era seu vizinho. Que por varias noites viera a sua porta pedindo para baixar o som, vez ou outra chamava Tália para ir beber em sua casa. Localizou-se.

Passou mais ou menos uma hora dando seu depoimento aos policiais, não foi preciso falar muito, havia somente digitais de Tália na arma, e Raul havia fotografado as garotas caídas ao chão e toda a cena até a policia chegar. Suicídio, era explicito.

Agora não era mais necessário perder o dia no cemitério com algumas garotas fúteis. Já sabia o que iria expor, em suas fotos, não se notava, nem por um instante o que era vivo. Todas estavam mortas, com sangue no chão, no rosto. Não foi preciso esforço. Mas algo parecia estar longe, não era nada que pudesse perceber agora, bastava sucesso. Bastava tê-la de volta.

Não sabia se era raiva, dor, medo, tristeza. Mas algo tomava conta de seu corpo, a fazia chorar horrores, a fazia gritar, soluçar, querer ir embora e ficar para sempre com sua irmã de alma. Não podia, tinha que avisar a mãe de Tália, tinha que fazer o que a amiga nunca mais faria por ela. Sentia solidão, enquanto se prendia a seus monólogos silenciosos, alguém tocou seu braço. “Tudo vai ficar bem...”, “Não , não vai, agora tudo tende a piorar”. Talvez fosse esse abraço que estivesse faltando, um ombro para molhar com lagrimas, evaporar. Saíram de lá, para que o corpo fosse levado para algum lugar que já não importava mais. Eram sete e meia da manhã. Ligar para a agência e cancelar as garotas, desfazer a reserva de roupas numa alfaiataria próxima. Caminhar pelas mesmas ruas que há duas horas atrás passara, achando que sua vida estava uma merda, e que nada poderia piorar. Tinha certeza que acontecesse o que acontecesse, sempre teria Tália ao seu lado. Agora era um estranho. Logo viria a ser seu próximo aliado a viver essa vidinha tão amaldiçoada, era obvio, era ele que estava lá no lugar dela, era ele que estava fazendo o que ela deveria fazer. Decepção.

Não eram necessárias apresentações, perguntas ou qualquer diálogo. A mão dele cobrindo a sua já era o suficiente. Não era hora de pensar em discussões passadas, bastava a solidariedade. Ele estava surpreso, nunca fora tão amigável com ninguém, aquela garota chorosa a sua frente o fez sentir um sentimento novo, e isso machucava, bastava sofrer por si próprio, não queria sofrer por mais pessoa, mas era inevitável. Como não dar atenção àquela cena tão agonizante? As pílulas fariam efeito hoje? A noite começou a pesar aos dois, era hora de voltar e dormir. Ou pelo menos tentar. Serviu alguns biscoitos que deviam estar lá há mais ou menos um mês, leite, e ofereceu uma de suas pílulas para descansar, aceitou claro. Ele a acomodou em seu próprio quarto, foi dormir na sala. Não adormeceu, sentidos de laboratório não a convencem, Luana ficou remoendo tudo que passou com a amiga, não era possível, tinha que ser mentira, um pesadelo. Precisava acordar. Simplesmente não conseguiu dormir, ficou das oito da manhã as três da tarde, esperando Raul acordar e levá-la ao funeral de Tália. Enquanto esperava, tomou um banho e tentou acordar, mas não dava, estava começando a se conformar que tudo aquilo era de verdade, e que as sete da noite, seria a ultima vez que veria Tália. Nunca mais receberia o colo de sua irmãzinha de alma. Ficou vendo alguns dos trabalhos que estavam jogados pela casa, varias fotografias ao chão, um incenso queimado, as fotografias eram apenas paisagens e pessoas sem expressão. Interessante. Foi para a sala, ele estava dormindo, será que acordaria com a tv? Pegou um biscoito, não descia... Não adiantava, de certo o pavor a comida de Tália estivesse, em seu corpo, como alguma homenagem, tortura. Ligou a tv, mudou de canal, nada além das mesmas idiotices. Sentou na poltrona, eram duas da tarde. E parecia que o tempo não passava. Estava louca para correr para casa e dar-se de encontro com Tália, contar como fora terrível o pesadelo que teve, culpa do vizinho. Que a segurou um tempo em sua casa, a fez tomar calmantes e dormiu com a consciência pesada por não avisa-la. Poderia ser! Ou então estava drogada, e aquilo tudo era uma terrível alucinação! Não adiantava, sabia que não era nada disso.

Encarou mais um tempo a televisão, o telefone tocou. “Dona Márcia...” Não era culpada, sabia disso. Ou será que não? “Luana, acalme-se, você sabe dos traumas que a Tália sempre teve, e do ódio que sempre sentiu de mim” Chorando, nada mais adiantava. “Espero que vá ao funeral, o pai dela também se matou...Acho que apesar de tudo os dois eram muito ligados... Vão ser enterrados juntos.” “Não pode!! Não o deixe tomar ela até no inferno!!” “Ela não vai para o inferno, meu bem” “Ela vai, ela se encaminhou” “Ela morreu querida..” Melhor desligar.

Quando acordou, Luana estava á sua frente, chorando mais ainda, com uma de suas camisetas, com o rosto de um errático bebe chorão. Na face dela, lágrimas corriam, competiam com o tempo para ver quem ia mais longe, quem a dominaria mais. Era melhor conversar um pouco, uma distração qualquer, mas não queria com ela o que fazia com todas as garotas. Não era certo. Um pouco de sua vida já o fez entender todas aquelas lágrimas, ela era tão sincera e transparente quanto cada fio que escorria de seus olhos. Ela era tão diferente mas tão igual. Era estranha toda essa situação. A rua era uma boa distração, ele á levou á sua faculdade . Tinha um lugar que gostava de ficar isolado, ela deveria conhecê-lo.

Ficou lá, cuidando dela até as seis da tarde. Bastava admira-la, havia conseguido dormir, e eles ficaram deitados no gramado por mais ou menos uma hora e meia. Mesmo de bermuda e uma camiseta três vezes maior que ela, uma maquiagem borrada, cabelo sujo e bagunçado, era mais bonita e sexy que qualquer garota que já esteve junto. Os olhos encharcados a deixavam mais vulnerável que de costume, as mãos delicadas segurando levemente a sua... Parecia estar calma, suave. Se não fossem os olhos cheios e a boca extremamente vermelha, não notaria a dor que ela estava passando. Era bom acorda-la. Não o perdoaria se perdesse a ultima despedida da amiga. Ou seria namorada? Ainda tinha tempo para saber... Será? Chamou-a, e partiram para seu apartamento. Ainda não era bom deixa-la só, pelo menos era o que sentia. Deu tempo para ela tomar um banho, e se vestir, enquanto isso fez o mesmo. Demorou menos que o comum, mal se molhou e já estava pronto para leva-la. Esperou poucos minutos, no caminho passaram em um bar, comprou um desses refrigerantes e um salgado. Talvez não tenha sido uma idéia muito inteligente, mas não tinha como saber.

Estacionou próximo a funerária, e entrou acompanhando-a. Ao entrar, Luana não se conteve mais uma vez, correu em direção ao caixão, quis toca-la, quis abraça-la. Raul a segurou firme, mas tomando cuidado para não machuca-la. Novamente o veio à cabeça, por que tanta preocupação com aquela garota. Um copo d’água bebido as pressas, e voltou para ver sua amiga. Estava horrível, toda inchada, o cabelo preso com um véu, que contornava a face, tentando inutilmente esconder os pontos dados na perfuração do tiro. Na sala ao lado estava o pai de Tália, como foram capaz, será que nem no inferno ele a poderia deixar em paz, será que era essa a eterna maldição de Tália? Estava louca para entrar lá, soca-lo, mata-lo mais uma vez, tirar-lhe os dentes que sobraram. Não estava desfigurado como a amiga, parecia feliz, maldito! Foi apenas por falta de diversão, certeza!Poderia arrancar suas vísceras, se não fosse aquele cara segurando-a, já teria feito isso com os próprios dentes, e afinal, porque ele estava tão próximo dela?

Foram para fora respirar um pouco, sair de perto de todo aquele clima horrível. Pediu um cigarro, ok. Ele começou a falar algo sobre elas, mas não dava para prestar atenção, toda aquela raiva subindo, literalmente. A fumaça entrando. O cigarro! De repente tudo que havia engolido nas ultimas doze horas saiu. Não havia mais nada. Pediu para ir embora, não queria ver a cena deprimente, novamente Tália estaria embaixo de seu pai, e pela eternidade. Voltaram para casa, Raul a perguntou se não queria passar um tempo em sua casa. Tudo bem, estava mesmo precisando ser cuidada. Depois dos dezoito, sua mãe sumiu no mundo e única pessoa que estava a cuidando tão maternal, paternalmente, estava sendo ele. Buscar algumas coisas para a temporada, roupas, cd’s, algumas fotografias, dinheiro, cheque e mais algumas coisas que poderiam ser úteis. Colocaram um colchão na sala, mas tudo bem, a partir daquela noite não seria mais necessário.

Tudo certo, ele ligou o som e mostrou alguns de seus trabalhos, fotografias interessantes. Permitiu que as fotos que ele tirou fossem para a exposição, desde que ela não as visse. Conheceram-se um pouco mais. Ele ia formar-se no próximo ano em direito. Não que gostasse de leis, mas não tinha encontrado nada mais interessante, ia acabar sendo fotografo mesmo. Contou sobre toda sua historia dramicômica.

Ainda estava extremamente abalada, era fácil notar. Tomou-a pelos ombros e foram para o quarto, os olhos dela estavam cheios de lágrimas novamente. Ficaram lá, ela deitada em seu peito, e ele acariciando seus cabelos, que ainda mal lavados, cheiravam a jasmim. À uma hora dessas, ele já estaria expulsando qualquer garota de sua casa, mas queria que ela ficasse para sempre. Entorpecendo-o com esse cheiro de jasmim, as lagrimas encharcando sua camiseta, e tudo ao redor morrendo. Essa noite não fora necessário nem uma das três pílulas. O dia tinha sido difícil e nada mais parecia importar, não que quisesse apagar tudo aquilo, mas estava sendo uma delicia fazer o tempo sumir com ela em seus braços.

Amanheceu, algo que parecia demorar tanto. A ficha caiu, mesmo, e dessa vez não a machucou ou fez chorar. Tudo estava diferente, Tália não pedia mais por socorro em sua cabeça.

Pegou umas moedas jogadas, e procurou um lugar qualquer para refletir. Tantas coisas passaram em sua mente, seus olhos lacrimejavam de raiva, seus dedos refletiam toda sua agitação, ansiedade. Não era hora de chorar, não era o momento para se lamentar por tudo que estava passando. Deu o último gole naquele café que parecia ser requentado, guardou o cigarro e foi dar uma volta.

Quando acordou, viu que Luana não estava em casa, sentiu um aperto. Mesma coisa que sua mãe devia sentir quando sumia em suas noitadas adolescentes. Costumado a não se preocupar com nada nem ninguém, foi ficando cada vez mais preocupado. Não sabia o que fazer. Deveria sair para procura-la? Esperar ela voltar? Era melhor esperar, se fosse procura-la certamente seria em vão. A cozinha pareceu convidativa.

Enquanto andava percebeu coisas que antes jamais havia percebido. Como os pássaros idolatram o sol. Como se soubessem que essa poderia ser talvez, a ultima vez que o vissem, como a claridade é capaz de nos cegar com sua pseudobeleza. Não pensaria mais no amanha, não pensaria mais no ontem. Voltou para o apartamento de Raul. Ele ali andando impacientemente pela sala com um copo de café na mão, fitando-a com certa decepção. Parou e perguntou onde ela tinha ido, ela o encarou e disse “chega desse faz de conta” pegou suas coisas, entrou em casa, pegou uma mochila e colocou tudo. Pegou todo o dinheiro que as duas estavam guardando, sendo o tempo todo observada por Raul. Não lhe devia explicações, agradeceu pelo que fez e saiu. Ele continuou seguindo-a, “fala comigo, por favor!”. Alguém acredita na resposta?

Não estava entendendo nada, de onde surgira tanta força? Onde estava a garota que adormecera em prantos ao seu lado? Talvez essa manhã fora a mais estranha de todas, um casulo se abrindo ou coisa parecida. Raul ainda atordoado seguiu-a por umas três quadras a frente, ela continuou a ignorá-lo, como se não conhecesse nada por ali, tomou um ônibus para qualquer lugar, deixando-o para trás.

Parou ali no ponto de ônibus, não tinha dinheiro para ir atrás dela afinal tinha saído de casa desesperado. Um tanto quanto tonto, sentou-se e permaneceu lá não se sabe ao certo quanto tempo, mas acredite, não passaram de trinta minutos, mesmo assim ele via como uma eternidade. Será que foi tudo um sonho?

Voltou para casa, afinal ainda tinha muito que fazer. Apesar de estar abalado, concentrou-se nas fotografias, revelou todas e selecionou as melhores, com a iluminação certa – ele era realmente bom nas fotografias – e as colocou numa ordem, que pareceu ser a mais correta. Não conseguia tirar os olhos daquela garota mergulhada em lágrimas e sangue, ora com os olhos trêmulos e tristes, molhados ora tão inerte quanto à outra. Nem mesmo parecia a garota que viu sair correndo de sua casa.

Entrou no ônibus, e sentou-se tranqüilamente, parecia ter acabado de sair de uma lavagem cerebral ou coisa parecida, não se via mais nenhum traço de tristeza em seu rosto, tirando os olhos ainda um pouco inchados. Desceu num ponto próximo ao terminal rodoviário da cidade, e comprou uma passagem para Cabo Frio. Não sabia ao certo o que ia fazer lá, mas sabia que era litoral e seus pais biológicos haviam passado a lua-de-mel lá e isso já era o suficiente. Passou a viagem inteira pensando se havia agido certo com Raul, mas agora já não era mais hora de se arrepender, só queria passar a viver um pouco mais com si mesma. Passou cerca de seis horas dormindo, quando chegou, sentiu uma descarga de energia, parecia que tudo estava pronto para sua chegada. Entrou em uma pensão agradável, que cheirava a maçã verde, e a fazia lembrar dos seus quatro anos. Alugou um quarto que ficava no segundo andar, assim como seu antigo apartamento, mas muito diferente o ambiente era todo decorado com motivos marítimos, bem para turistas. Mas não era essa sua intenção, esperava passar pelo menos seis meses hospedada lá.

Era meio de março, ou seja fim de temporada, os quartos estavam na maioria vazios. Jantou junto aos escassos hospedes e foi dar uma volta, conhecer o lugar e quem sabe um emprego. Andou por toda a calçada que beirava a praia e logo na quarta quadra viu, talvez, uma chance para ela ali. Era uma lojinha de artesanatos e bijuterias que precisava de vendedores, talvez o maldito tele-marketing a ajudasse nessa hora. Entrou e conversou um pouco com uma vendedora, marcaram uma entrevista para a manhã seguinte. A cidade era bonita, e conseguia imaginar seus pais lá, sentados a beira do mar, assim como se vê naqueles filmes românticos até demais. Brisa no rosto, o som das ondas tudo a fazia sentir-se incrivelmente bem, assim como os abraços acolhedores de Raul lhe foram na noite anterior, e por isso mesmo ele não a fazia falta alguma.

Voltou ao hotel e tirou as coisas de dentro da mochila, não tinha muita coisa, apenas o necessário. Tomou um banho naquele banheiro que parecia de brinquedo, de tão engraçado, a pia era de um alaranjado forte como da cor de um mamão, e na parede havia um mural com as mais variadas fotos, pessoas tomando banho, cães urinando em postes e coisas afins. Ela não pode conter um sorriso. Ligou o chuveiro que olhando bem, lembrava um polvo, pois da sua circunferência saíam pedaços de plástico colorido. Secou-se e foi dormir, no escuro o teto do quarto de transformava num imenso céu estampado de estrelas dos mais diversos tamanhos. Adormeceu rápido, com o dia agitado, não pode livrar se de mais essa noite cansada.

No dia seguinte foi á entrevista, fora muito bem recebida pela dona, e conseguiu o trabalho, e também não haviam muitos interessados, ela foi a única a se candidatar. O trabalho era fácil, simples e até agradável, eles também confeccionavam as bijuterias feitas com materiais naturais. Com o tempo Luana adaptou-se muito bem a seu novo modo de viver. Dona Marieta, proprietária da pensão tornou- se uma boa companheira para as noites vazias, contava-lhe histórias sobre o lugar e algumas coisas engraçadas que aconteceram na pensão, ela era uma artista plástica aposentada, por isso a decoração peculiar da casa, e tentava ensinar a Luana algumas coisas que ela sabia.

Ainda estava inconformado. Após levar as fotografias ao responsável pela exposição do curso sentou-se a sua poltrona favorita e ficou lá, ouvindo os vinis que um dia pertenceram à sua mãe, e que deus sabe o quanto a pobre mulher sofreu com sua partida, e com a perda de seus adorados vinis, claro... As fotografias haviam sido muito bem aceitas pelo organizador, que ficou espantado com a naturalidade dos modelos e os ângulos desregulados, realmente parecia uma cena de assassinato, ingênuo. A luz era fraca, mas forte o suficiente para iluminar todo o rosto de dor de Luana, e a imparcialidade cadavérica de Tália, claro que não foi informado ao homem que aquilo era realmente uma cena de um crime. Afinal, aonde entraria o mérito de Raul? Na sorte? Não definitivamente, Raul não era um homem de sorte. A única mulher que deixou vasculhar seu interior, conhecer o âmago de suas emoções, sumiu, simplesmente resolveu desaparecer de sua vida. Poderia começar a achar que Luana fora seqüestrada, abduzida, não queria acreditar que a doce señorita que acolhera em sua casa, o tratou com tanto desdém.

Talvez não por sorte, mas por consolação, suas fotografias foram selecionadas para a mostra principal em uma cidade no litoral do Rio de Janeiro. Afinal, era uma escola renomada com uma filiação nacional. Talvez novos ares o ajudassem. Passava todas as noites em vários bares, até a hora em que estes fechavam, e não se via totalmente sóbrio desde o dia em que viu Luana, sumir no ônibus.

Arrumou uma mochila com poucas coisas, documentos ,ok. Iria para uma dessas cidades bonitinhas, expor suas fotografias de horror, quem sabe equilibrar aquela alegria exarcebada, com um pouco daquelas imagens chocantes, e a tristeza do seu olhar. Ao chegar naquela cidade irritantemente bela, hospedou-se em uma pequena pensão, seu quarto era o ultimo do corredor, e por isso passava por todos os quartos, ao passar por um deles, sentiu um perfume conhecido, jasmim.

Chegou do trabalho, não estava cansada, mas faminta. Passara a tarde toda fazendo uns colares, os olhos doíam um pouco, os cabelos estavam bagunçados com um ar de infância, ainda estava de avental e doida para comer algo, e logo. Correu para seu quarto e foi tomar um banho, notou que o ultimo quarto do corredor estava ocupado, achou ótimo, teria com quem trocar idéias e experiências, não que Dona Marieta não fosse boa companhia, mas as historias estavam começando a ficar repetitivas. Tomou seu banho e vestiu um vestido florido, parecia uma criança, vestida de amarelo e laranja. O cheiro de jasmim misturava-se com o perfume do jantar, já sabia o cardápio: ensopado de mandioca, a especialidade da casa. Sentou-se a mesa ansiosa para conhecer o novo hóspede. Dona Marieta estava ocupada demais para contar a Luana sobre o novo hóspede. Ela subiu para chamá-lo.

Estava organizando algumas observações, que seriam postas junto as fotografias para dar uma idéia de quem seria o fantástico arruinado fotógrafo, quando a dona da pensão veio avisa-lo sobre o jantar, não estava com fome, mas o cheiro estava tentador. E afinal, queria descobrir da onde vinha aquele tão conhecido cheiro de jasmim. Desceu as escadas lentamente, como se algo o mantesse naquele andar superior.

Chegou a cozinha, havia uma moça de cabelos curtos, tão curtos que só pode notar que se tratava de uma mulher pelo vestido que usava, além de curtos eram laranjas como o pôr-do-sol. Tinha o mesmo porte de Luana, achou engraçado.

Quando virou-se para ver o rosto de sua nova companhia...”Que diabos você faz aqui? Me deixe em paz!” “Você? Seu cabelo... Sinto desaponta-la, mas não vim te ver.” E o jantar continuou. Luana foi dar uma volta, quando voltou a pensão, encontrou Raul na sala assitindo a um programa qualquer na televisão com umas fotografias em cima da mesa de centro. Instantaneamente se reconheceu, e também a Tália. Esse fora seu pior dia desde a partida.

ttyn dmn
Enviado por ttyn dmn em 27/05/2007
Código do texto: T503150