Fragmentários

Ele não conseguia lembrar-se das coisas mais recentes e as circunstâncias que o levaram a estar vivendo aquele pesadelo: - o lugar, o dia exato em que fora preso. Há, no entanto, uma clara lembrança de fatos ocorridos em tempos mais afastados, se bem que em pensamentos que ameaçam despedaçarem-se no chão frio em que pisa. A consistência do real se confunde em sua memória e o passado lhe vem à mente como imagens distorcidas e tudo começa a entrechocar-se, confundindo-o, formando realidades sem a mínima lógica.

Em raros momentos de lucidez, pensava na própria morte como interrupção do sofrimento, principalmente quando do cárcere era levado a provar seu limite físico e psicológico em interrogatórios seguidos de brutais torturas.

Finalmente nada ficara comprovado, quanto à sua participação em atos contrários ao regime totalizante que tomara de assalto o país. Foi posto em liberdade algum tempo depois, sem nenhuma explicação ou qualquer pedido de desculpas por seu sofrimento. A única certeza viável é que estaria fichado como terrorista, por infringir a segurança nacional, coisa bem corriqueira naqueles tempos de terror e opressão.

Assim foi que se viu de novo na rua, sem rumo, sem alguém que o acolhesse.

Em vaga lembrança, recordava-se de como tudo começara. Naquele dia participava de um comício relâmpago no centro da cidade. Olhos atentos em direção ao palanque improvisado, um pouco afastado de onde estava. Ouvidos apurados tentando captar as palavras que vinham de um deficiente autofalante. Ao seu redor, jovens carregavam faixas pintadas, panfletos improvisados, cartazes em folha de cartolina escritos com canetas hidrocor. E muitos outros iam chegando. Eram inflamados pela incitação daqueles que estavam com a palavra, tinham certa esperança, um pouco de ilusão, de poderem se vingar daquela opressão. No entanto não percebiam às quantas andavam as ruas e proximidades do evento. Pelotões de choque, agentes do Dops haviam cercado o local.

Já podiam sentir o efeito do gás lacrimogêneo. O pânico começou a tomar conta do evento. E todos tentavam sumir sem deixar rastros, os mais velhos porque tinham enfrentado, em outras épocas, a mesma perseguição por aqueles que se achavam detentores do poder, e os jovens por total falta de experiência.

No meio de tanta confusão, se vendo sozinho, procurou atingir a rua mais próxima, sem passar pelo ponto principal da praça, totalmente ocupada pelas forças da repressão, mas mesmo assim foi perseguido por soldados montados que o amedrontavam com palavras de ordem e com o ruído das patas dos cavalos. Em desabalada corrida chegou a um local inesperadamente seguro.

Em sua mente confusa os fatos se situavam em contradições, mesmo assim fazia questão de voltar àquele lugar.

A rua estava escura, vazia e a solidão bateu forte. Parou diante do prédio velho. A chuva fria que caia na calçada esburacada tornou a noite mais triste, a solidão mais profunda.

Do interior do prédio nada ouvia. O único som audível era do vento, vindo do mar próximo e de longe vinha o uivo de cão desesperado em seu protesto agourento.

Bateu na porta, a princípio de forma suave. Aguardou. Espera cansativa. Nada! Ainda olhou as janelas que davam para rua, na esperança de visualizar alguém se esgueirando ocultamente que pudesse estar observando.

Lembrava-se muito bem de seus olhos negros, misteriosos, dos cabelos negros compridos e lisos, voz macia, boca relativamente grande e carnuda. Tudo composto em sua memória com real nitidez.

Onde está ela? Por que se esconde nesta noite gelada? No seu interior havia a esperança de ser recebido, da mesma forma com que fora acolhido no dia que, em fuga de uma perseguição, era caçado e acuado naquele beco sem saída, surpreendeu-se ao ver aquela mesma porta abrir-se para acolhê-lo e protegê-lo de tal perseguição.

Ela não disse uma palavra, ele, por sua vez, não abriu a boca. Lá fora o som de trotar de cavalos que vão se afastando.

As mãos se encontram, olhos se penetram. Ela aproximou o rosto e beijou sua boca delicadamente. Tinha os olhos brilhantes. Ele, meio surpreso, deliciado com o beijo, mergulhou na paz.

A noite foi de corpos que se entregavam como pura convenção.

Sem noção do tempo, acordou sozinho, precisou de alguns segundos para reconhecer onde estava, olhou para o lado e então descobriu o

espaço vazio, sentiu-se perplexo e abandonado. Um barulho o fez despertar para a realidade, um grupo de homens invadira a casa, vasculhavam móveis, gavetas. Ele tentou falar, mas sua voz foi abafada por outra mais forte que o advertiu: “Se reagir, morre aqui mesmo”. Foi algemado e conduzido por seus algozes.

Agora, em liberdade, cansado de andar sem rumo, sem destino, sustentava a perspectiva do reencontro. Bate forte na porta, que insiste em se manter trancada.

Ao longe, ouve passos de alguém que caminha em sua direção. Um senhor se põe diante dele e o interroga: - O que o senhor deseja? Aí não mora ninguém.

Ele, surpreso: - Como não mora. Passei uma noite inteira aqui com ela. O homem com muita firmeza retruca: - Ora, você não é o primeiro que afirma isso. Outros já aí estiveram diante dessa porta fechada. Essa mulher não existe. Em gracejo, continuou. Só pode ser uma alma do outro mundo. Não vê que esta casa é mal assombrada, vive fechada há muitos anos!

Isso o deixou muito desapontado e o fez sentir mais infeliz. A noite se fez mais negra. Sem nada dizer prosseguiu no seu caminhar sem rumo.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 06/12/2014
Reeditado em 08/12/2014
Código do texto: T5060220
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