ACTOR SECUNDÁRIO

“Foi escolhido, surpreendentemente, para o personagem em falta da peça. Já não esperava depois do último ensaio ser uma lástima. Tinha algum nome, quer dizer, fama de actor secundário de secundário, de segunda fila, quase de refugo. Agora a situação era original, actor secundário, mas com mais presença significativa em palco. E mais texto. Mais texto para decorar e dizer com algum dramatismo. Ficou entusiasmado e ansioso por representar a sério, à séria, mesmo secundário, sempre encolhido na importância de ser alguém a fixar, quase um anónimo entre estrelas, figurante com pretensões, contudo uma presença para um público. Digamos, entusiasmo moderado, uma réstia de alegria encolhida prestes a explodir. Não tinha dúvidas, a felicidade é relativa e todos os sentimentos subsequentes são, por isso mesmo, relativos. Acreditava que a sua emoção era tão forte como a do actor principal. Tão evidente e precisa. E o entusiasmo cresceu proporcional a esta certeza. No fundo, pensou, nada me separa daquele outro que me faz sombra na sua imponência primacial. Estava eloquente, talvez pelo próprio texto que ia digerindo e transformando-o no personagem em falta da peça. Tratava-se da investigação de um crime. Crime de homicídio. No plural. Várias mortes violentas ocorriam sem nenhuma explicação plausível. Seja o que isto possa querer dizer. Haverá algo humano que, mesmo sem explicação, não seja plausível? Admitia-se que pudessem ser crimes relacionados, sem qualquer relação, um ou vários autores, o mesmo ou diferentes móbiles. Tudo era possível, tão racional como absurdo. Os personagens interpretavam os diferentes papéis exigíveis. O dele ocorria na sombra, era um dos suspeitos, um personagem maldito, maldito e secundário. Interrogou-se. Qual o motivo do seu papel ser secundário? Por ser simplesmente suspeito? Por ser supostamente maldito? O mal é alguma condição para a perda de dignidade dramática? Ou trata-se apenas de um jogo aleatório de plausibilidades? Ou mesmo de modas ao gosto de audiências? Noutro prisma, tudo poderia ser diferente, ele ocupar o centro das atenções como personagem principal de uma peça rasca, sublime, pérfida, grandiosa. O que o fez ser actor, querer ser actor, secundário, principal, não importa, foi a capacidade de se interrogar e a dificuldade de se identificar - talvez sim, talvez não. Culpado ou inocente, nunca soube responder, muito menos escolher para representar. “

(Texto decorado numa tarde pelo personagem, principal ou não, de uma peça a inventar)

“Contos em 8 Milímetros”