Assou um urubu-rei, pensando assar um peru 


     Zé Preá encompridava a ladeira com seus passos trôpegos. Os joelhos travados e o equilíbrio duvidoso faziam seu corpo inclinar todo para a direita, num deslocamento rápido chegava até o limite oposto da calçada e ao alcançar essa fronteira sua mente enevoada mandava-o de volta para o centro do passeio, que ele ultrapassava, despencando, novamente para o outro lado. Assim ele ia num zig-zag enorme, pensando sobre a vida e na tentativa de curar a “carraspana”, antes de chegar a casa.
 
     Resmungava baixinho seus pensamentos sobre os afetos e desamores que permeavam seus dias. Era casado há muitos anos e tinha quatro filhas. 

     Ele gostava da Juva, Sua “nega” fogosa, trabalhadeira, cozinheira de mão cheia, cujo único defeito era a braveza. Que mulher brava! Deus meu! Se ela lhe visse naquele estado ia sobrar pescoção para todo lado. Para piorar as coisas, havia o fato de ele ser tão franzino, magrinho. Juva era gorda, bem disposta, levantava sacos de 3oklg com muita facilidade. Ele admirava aquela força, quando não estava voltada contra ele. 

     O destino deu a ele e sua Juva quatro lindas filhas. Todas parecidas com a mãe, belezas afro-brasileiras legítimas, negras brilhantes e fortes, literalmente, enchiam os olhos. 

     Voltando ao presente Zé refletia: “ que culpa tenho eu de ter o coração tão mole? Também tenho o direito de querer agradar aos amigos, elas que comam farofa...” - resmungava, entre dentes, pois voltava para casa sem um tostão. Pagara bebida para todo mundo. Pura cortesia - então, não era véspera de Natal?
O único problema era ele ter sido o encarregado do peru, as mulheres o esperavam para preparar o assado da ceia. O que poderia fazer?
Pensou em fugir e só voltar depois do carnaval, mas as prováveis conseqüências fizeram seu couro cabeludo arrepiar. Pensou em roubar algum peru, nem que fosse de dentro de um forno, mas e se fosse pego no ato? 

     Nunca tinha roubado nada, ainda mais assim, bem na véspera do aniversário de Jesus; menino Jesus poderia até lhe castigar e, criança, já sabe não tem dó nem piedade. Credo! Benzeu-se três vezes. Não queria pecar nem em pensamento. E, assim, sem se dar conta, deixou a ladeira para trás e já estava em frente ao terreno baldio, chamado “Buraco da Filó”. Aí se jogava de tudo, por isso seus eflúvios mal cheirosos abrangiam quilômetros, atraindo todo tipo de ser vivente. 

     De repente, Zé Preá para hipnotizado. Vê ciscando no meio do lixo uma enorme ave, que imediatamente visualizou depenada e assada na mesa de Natal. E o melhor viu, na imaginação, suas mulheres de sorriso aberto, carinhosas e felizes. 

     O longo percurso, acrescido daquele cheiro ácido, desanuviou suas idéias. Tirou a camisa e passo a passo cercou a ave entretida na vasculhação. De fato estranhou aquele peru um tanto corcunda e escuro, mas cada um é como Deus fez; pulou com a camisa aberta bem em cima da dita cuja e a manteve ali em sua própria mortalha. 

     Feliz correu para casa. Com o bicho debaixo do braço entrou na cozinha vazia, ouviu conversas e risadas na porta da frente. A panela de água fervia no fogão; apanhou o facão e com um só golpe degolou a penosa. Levou para o fundo do quintal e voltou para buscar a água. Quarenta minutos depois, entrou satisfeito na cozinha com a ave desviscerada e depenada, dentro de uma bacia. Chamou as mulheres que acharam o peru um tanto magro, mas peru é peru: “vamos engorda-lo com muita farofa”- disseram. 

     À meia noite mesa posta, copos de requeijão cheios de Sidra Cereser, brindaram felizes mais um Natal. 

     Dois dias mais tarde Juva foi até a horta e atrás das couves se depara com um monte de penas pretas, seu facão de cozinha e a cabeça em decomposição de um urubu. Seus olhos e bocas se abriram em muda compreensão. Num instante percebeu ter assado um urubu-rei, pensando que era um peru. 

     Sentiu tanta raiva que arreganhou os dentes como lobo diante de carniça: “Zé Preá me paga.” – murmurou Juva, correndo para dentro de casa.

Célia Regina Marinangelo