ode à minha família

Daquela xícara de café não deveria ter tomado o mínimo gole. Com aquele café teria eu manchado a parede e manchando teria gravado uma lembrança em todas aquelas mentes. José, talvez, levantasse a voz em minha defesa, mas os outros calados ficariam, como se tomassem partido, protegendo-se de um castigo, a pensar em suas próprias costas. A verdade é que não derramei o café nem gravei a lembrança. Sou tão sujo quanto eles.

Até quando agüentaremos a arrogância desse ditador de ordens que me fazem tão baixo e vil, uma tirania que nos compra o silêncio com um dinheiro que nem muito é, mas compra as nossas necessidadezinhas e satisfaz o ego dele. Nunca vou esquecer os olhos de minha mãe em súplica e eu atado pelo medo, covardia ou qualquer outra coisa que me prendia ao chão lamacento desta casa. Não quero cinzeiro de prata, nem relógio de ouro. Quero minha honra e vergonha que ficaram presas nas entranhas de minha mãe e que não vieram com meus irmãos. São tão ou mais fracos do que eu: não lhes passo nada de útil, só um grito embargando a respiração.

Ele não devia ter feito o que fez. Quando vi o sangue, senti vontade de matar aquilo que se dizia meu pai. Por curto tempo senti vontade, mas logo veio o medo, a covardia que me anulam a existência e me fazem o pior ser, o ser mais desprezível, indigno mesmo de um túmulo. Minha mãe e irmã se esvaindo em lágrimas e eu estático segurando a mão de José. Apertando forte, firme, como se eu precisasse passar a minha mesma dor para ele, e ele já sofria tanto quanto eu.

Como um psicopata, queria que presenciássemos aquela violência: obrigava-nos a ver minha irmã abortando e o vestido sujo de sangue esfregava no rosto dela perguntando se tinha se arrependido. Era um pai? Aquilo era ser pai? Minha mãe chorava e ele gritava: não queria ouvir choro. José fechava os olhos enquanto eu observava tão covarde e medrosamente, como sempre. Se eu tivesse quebrado a xícara naquela manhã e dito o que eu tenho a dizer, talvez seria diferente. Talvez se mamãe tivesse dito não à primeira imposição, ao invés de me empurrar nessa cadeira de rodas eu empurraria a cadeira, levantaria e iria embora.

Eu poderia ir embora de qualquer maneira, mas sou tão covarde que nem pôr fim a esta existência inútil me salta à vontade. Falta de brio e de sangue nas veias: é o que me faz pensar quando vejo todos nós baixando a cabeça para ele. Quero minha dignidade! Quero minha dignidade! De volta? Não! Acho que nunca tive dignidade, não posso pedi-la de volta. Quero a dignidade da minha mãe de volta! Quero quebrar a xícara e manchar com o café a vida que eu, José e minha mãe levamos e empurramos.