Descompromissado tempo

Acordou cedo, se arrumou e saiu. Rapidamente estava na praça, correndo, como fazia todos os dias. Era dessas que vivia em busca de algo ou alguém que fizesse seu coração bater descompassado.

Realmente esse era o lema da sua vida: Sempre que tiver de escolher, não escolha o fácil, o socialmente aceitável, o confortável ou o convencional, escolha o que faz seu coração bater mais rápido.

O céu estava limpo e enquanto corria pensou como era possível viver sob aquele céu e ser triste. Esses pensamento só são possíveis quando se é jovem.

Olhou las poucas rugas de sua mão e logo voltou para seu devaneio, ao dia tão agradável do passado, aquele dia mágico de 1989. Lembrou de tudo o que foi bom. De fato, o dia e o ano não tinham sido tão mágicos, mas a memória é uma menina voluntariosa, ninguém consegue dominá-la. Naquele ano haviam eleito a Carlos Saúl Menem e o comunismo encobria as privatizações e a pobreza do país.

Continuou correndo. A juventude, a armazenamos pensando que somos jovens, tudo é uma questão de querer. Sem se dar conta, havia falado a ultima frase em voz alta e um homem que corria perto dela respondeu a pergunta mesmo sem conhecê-la. Ele falou baixinho, disse que ela não deveria se preocupar, pois era jovem e bonita como poucas. Ela ficou observando aquele desconhecido se distanciar. O desconhecido era alto, tinha corpo atlético e no tinha barba, o que lhe conferia um aspectos jovem, mais que o que realmente era. Pensou que ele deveria ter uns 35 anos, embora o rosto sugerisse bem menos. Não poderia imaginar, mas o estranho tinha exatos 35 anos. Não era surpreendentemente bonito, mas possuía uma segurança em sua voz, aquela confiança que somente o tempo somado as experiências costumam deixar. Ela não costumava correr tão rápido, porém era jovem, e tinha bom condicionamento físico.

Rapidamente conseguiu acompanhá-lo na corrida, diminuiu a velocidade ao chegar perto dele, no entanto, nada disse. Com a proximidade percebeu que ele tinha olhos da mesma cor do céu. O céu que sempre a fazia devanear e talvez por isso ficou muda, encantada. Como ela não falou nada, ele rompeu o silêncio.

- Meu nome é Pedro. - Disse isso ao mesmo tempo que lhe estendia a mão parando subitamente a corrida.

Sem pensar muito ela disse: - Me chamo Silvia. - Você costuma abordar desconhecidos ou só as desconhecidas? Enquanto falava observava sua mão estirada e não entendeu porquê seu coração batia descompensado, mesmo contra sua vontade.

- O que a faz pensar que não a conheço? - Respondeu ele com outra pergunta. Lembrou o episódio do chaves e da frase clássica: somente os idiotas respondem uma pergunta com outra pergunta...

- Eu lembraria de você, tenho ótima memória, sem dúvidas não esqueceria alguém tão invasivo. - Não sabia porquê estava sendo mal educada, ele no entanto, parecia não ligar, tinha expressão abobada.

- Silvia. - Pegou sua mão e pôs no seu peito. - Meu coração nunca esteve assim antes. - De alguma forma eu devo mesmo te conhecer. - Disse em um tom meio brincalhão...Acho que vamos passar o resto da vida juntos...

E dessa cantada barata estiveram dez anos juntos.

Silvia jamais imaginou que o resto da sua vida seriam somente dez anos. O salão estava cheio, amigos, os dois filhos e todos os parentes. Agora olhava o corpo inerte de seu marido e se esforçava para reviver aquele dia de 1989, com vontade de sentir-se bem, com vontade de sentir-se jovem outra vez, só pra tentar continuar respirando, só pra tentar continuar vivendo.

Suze Rodrigues
Enviado por Suze Rodrigues em 15/02/2015
Reeditado em 21/04/2015
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