A ONCINHA ACANGUAÇU

Era uma vez... sim, era uma vez , porque toda história que se conta para crianças começa assim.

Pois bem, era uma vez um livro que caiu de uma estante em certa biblioteca. O livro ao cair abriu-se e de suas páginas amareladas pelo tempo saiu uma luz brilhante, primeiro verde, depois amarela e por fim vermelha... elas dançaram e se misturaram e então se acomodaram, lindas como bandeira desfraldada ao vento e ...espere ..., algo mais está se formando!!! O que será ??? Com pêlo fofinho, com manchas escuras... é uma onça ... uma oncinha travessa que vendo-se livre do livro mágico, sim , esqueci de dizer que o livro era mágico e a oncinha vendo-se finalmente livre das páginas encantadas, saltou alegre da luz e, manhosa apresentou-se:

- "Olá amiguinhos"!! Sou a oncinha Acanguaçu. Por anos vivi aprisionada no encantado mundo do livro mágico, porém, hoje alguém tirou o livro da estante e eu fiquei livre para contar a vocês histórias lindas do mundo em que vivo no encantado reino de Canguçu.

- Quer ouvir?

Quando eu era uma oncinha pequenina ainda e andava livre pela grande mata, admirava a tribo de índios conhecida como "Tapes", eles falavam uma língua estranha, o " guarani"; eu admirava à distância, suas danças, sua vida junto a natureza, a beleza de sua pele, os seus cabelos, porém, eu tinha tanto medo deles, quanto eles tinham de mim.

Um dia eu andava distraída, quando de repente... Ai!... , que susto, um indiozinho estava bem na minha frente , acabamos ficando amigos e ele me batizou de Acanguaçu, que na língua dele significava , entre outras definições " Cabeça Grande ". O tempo foi passando e a nossa amizade era cada vez mais forte, até que um belo dia não vi mais meu amiguinho, fiquei triste, desolada, pois tu sabes pequenino, que ter um amigo é muito importante. Pois bem, procurei meu amiguinho e não encontrei, custei a compreender que a página tinha virado e que para eu rever meu amiguinho, precisava começar a ler tudo novamente, mas a curiosidade pelo que havia nas outras páginas do livro me fizeram avançar para a próxima página e, quando espiei devagarinho, escondido na margem , pois havia vozes alteradas, dois homens bem diferentes dos índios brigavam; eu não entendia bem o motivo da briga, mas parece que os dois queriam ser

donos do mesmo pedaço de terra, até que ouvi falarem em "Nossa Senhora da Conceição" ... Sim ouvi bem direitinho, e a briga acabou, porque eles resolveram doar a terra para Nossa Senhora da Conceição, uma bonita Senhora, cheia de luz, e fizeram para ela morar uma casinha branca, pequena, simples mas cheia de paz e, esta Senhora era tão boa, tão querida por todos naquele lugar que homens e mulheres deixaram suas casas e construíram moradas novas, próximas a daquela Senhora tão boa e, para deixa-la feliz plantaram flores, fizeram uma bonita praça em frente a sua casinha.

E assim, o tempo foi passando, novas casas foram aparecendo e eu sempre admirando tudo o que acontecia naquela vila, sim, pois já chamavam o lugar de vila de Canguçu. Mas nem tudo era bonito, lembro que li em algumas páginas que homens que já eram chamados canguçuenses, pois haviam nascido ali, pegavam em armas e iam para a guerra, algumas até lembro o nome: "Guerra do Paraguai, Revolução Farroupilha, Revoluções de 1893 e de 1923. Eram tempos difíceis aqueles, mas os canguçuenses mostraram sua bravura e coragem. Muitos voltaram, outros ficaram presos nestas páginas para sempre.

Lá ficou um amigo que conheci, " Capitão Henrique José Barbosa", felizmente não esqueceram dele e, lá no fim da história veremos que ele foi imortalizado no museu da cidade, onde trabalha esta nova amiga que abriu o livro e me ajuda a contar esta história para vocês.

É gostoso relembrar tantas coisas que ficaram para trás. A vilinha foi crescendo entre os cerros, a rua principal, poeirenta, pois ainda não existia o calçamento, abrigava 2 praças centrais, uma enfrente a Igreja Matriz e outra três quadras depois, esta acabou sendo engolida pelo progresso desta menina que crescia e que em 1938, passou a ser chamada de cidade.

Naqueles dias mornos e tranqüilos, as lavadeiras entregavam nas casas as roupas alvas e engomadas, carrocinhas passavam trazendo em cada porta o pão quentinho para o café, o leite para a criança , a água para o banho ... sim a água para o banho e para todo o consumo da casa. Esqueci de contar que a água não vinha pelos canos e sim de vertentes naturais; três importantes cacimbas abasteciam de água a nossa cidade; uma ficava no cerro e duas outras na cidade, as cacimbas do Ouro e da Prata, isto eu descobri em um dia em que virei a página do livro e lá no fim de uma enorme ladeira , na beira de um lindo mato, uma reunião de pessoas em volta de uma construção arredondada parecendo um forno de pão, pois bem, as pessoas humildes conversavam e riam e juntavam água em vasilhas, uns colocavam em barrís nas carrocinhas, outros em latas e saiam equilibrando-as na cabeça mas, para onde ia aquela gente,... fui atrás e vi que toda aquela água era vendida de porta em porta pelas ruas da cidade, a rua da frente a as duas ruas dos fundos, pois eram só as que existiam. Lembro também, que carroceiros levavam nas casas a lenha para o fogão, sim, pois não existiam fogões a gás, e esta era atirada para dentro dos pátios pelos carroceiros que, caprichosos cortavam as achas de lenha todas do mesmo tamanho. Ai!! Ai!!... Acho que fiquei muito tempo para a admirar este serviço que já não existe, pois acabo de levar uma acha de lenha entre minhas pequenas orelhas e, como dói!!

O tempo passou e eu cada vez mais, maravilhada com todo aquele progresso que eu via nascer pois ainda lembrava claramente da aldeia dos índios do início da história, andei pela rua, vi o povo se recolher e de repente... tudo ficou escuro, não entendi o porquê; em outra noite sai e zás..., ficou tudo escuro de novo, ai compreendi que em determinada hora as luzes da cidade apagavam todas ao mesmo tempo e que se eu não quisesse ficar no escuro, teria que me recolher cedo. E assim se passaram vários e vários anos ou várias e várias páginas.

O cinema reunia jovens, crianças e idosos, era o grande divertimento da época; primeiro era mudo, depois passou a ser falado, depois lentamente foi morrendo pois a televisão tomou o seu lugar. No clube haviam as partidas dançantes, onde homens e mulheres bonitos e bem vestidos dançavam ao som de bandas musicais como a Lira, a Santa Rosa e a Santa Cecília; hoje os divertimentos são outros.

Ao virar uma das páginas, enchi meus olhos de oncinha com a beleza daquele cerro no fim da rua, que majestoso observava a minha cidade: era o Cerro da Liberdade, sim, da Liberdade pois lá foi dada a alforria a duas meninas escravas em homenagem aos canguçuenses que retornaram da Guerra do Paraguai. Mas virei a página e já não vi mais o majestoso cerro, parece que o progresso também o engoliu.

Nesta nova página, fiquei fascinada por ver algo tão diferente, eu já conhecia o automóvel, pois no reino de Canguçu já haviam alguns, mas aquilo que eu vi era muito maior , andava sobre trilhos, e soltava fumaça... fiquei olhando, olhando e não resisti...pulei na janelinha e escondidinha admirei a paisagem, o vento batendo em meus bigodes e arrepiando meu pelinho...A viagem estava tão boa que dormi, quando acordei estava em um reino muito maior, fiquei sabendo que era Pelotas, fiquei assustada com todo movimento, porém, procurei me acalmar ,pois nesta hora desespero não resolve, então ouvi alguém gritar.

-A Maria Fumaça voltará em breve para o reino encantado de Canguçu!!

Ufa!!! Que alívio, escondi-me novamente e quando menos esperei ela estava em movimento e eu, curiosa, não perdi de admirar a bela paisagem até chegar em casa. Foi uma aventura e tanto.

Dormi uma ótima noite de sono, acomodada em meu solo canguçuense, quando acordei por páginas e páginas e vi grandes mudanças, minha cidade havia

crescido muito, já não existia a mesma tranqüilidade, as luzes já não apagavam mais a meia noite, as aguateiras, as lavadeiras e engomadeiras haviam sumido, sim, já não havia mais lugar para elas nestas novas páginas, pois a água já era encanada e as máquinas de lavar, vendidas num comércio e agora farto e gerador de muitos empregos tomaram seus lugares.

Surpresa mesmo eu tive quando vi que as notícias na minha cidade corriam rápidas, graças as duas rádios que surgiram. Elas alegravam a vida de todos com músicas e também transmitiam as notícias com rapidez. Ao lado delas surgiram os jornais, mas parece que os homens dessa terra não gostam de registrar os fatos que aqui ocorrem, pois os jornais normalmente são de curta duração. Em uma página vi um alegre carnaval nas ruas, com mascarados e bichos enormes que encantavam a criançada. Vi torneios de futebol entre os três times mais populares da cidade América, Cruzeiro e Canguçuense, vi o movimento tradicionalista que crescia, cultuando nossas raízes, vi tantas coisas nestas 150 páginas que folhei...

Mas vamos em frente, dei uma espiada nas últimas páginas que estavam escritas e vi muitas e muitas ruas que corriam em todos os sentidos. Meus olhos buscaram em volta a tranqüilidade dos arroios correndo mansamente, o canto dos pássaros, as tardes de sesta, mas estas já não existem, minha cidade cresce muito, carros quebram o silêncio , as crianças já não brincam brincadeiras de roda, de carrinho nas decidas ou com bonecas de pano, elas agora, jogam jogos eletrônicos ou navegam na internet, parecem adultos, tem opinião própria e sabem desde pequenas o que querem para o futuro.

Gostei de ter folhado o livro da história. Relembrei tantas coisas, aprendi outras tantas, porém amiguinho, minha história não termina aqui, existem muitas páginas em branco no livro encantado que deverão ser escritas por ti , por teus coleguinhas e todos aqueles que tiverem sensibilidade para registrar sua presença.

Agora preciso ir... alguém me chama... será a voz dos antepassados? Sim pode ser pois todos os que passaram pelo Reino Encantado de Canguçu ainda estão aqui, cada um preso na sua respectiva página, mas todos muito felizes porque o livro foi aberto e eu consegui mostrar para vocês esta história.

Dizendo isto, a oncinha de um salto, entrou no mosaico tricolor que pairava sobre a última página escrita do livro, no emaranhado de cores vermelha, verde e amarelas. Vi-a correndo feliz pelos campos e entrar na mata. As cores foram enfraquecendo e um hino se fez ouvir, era uma homenagem não a minha amiga a quem os índios guaranis chamaram Acanguaçu, mas aquele reino encantado, bela jóia de nosso país ... referiam-se aos heróis que tombaram neste chão, as valorosas mulheres , o trigo que saciou nossa fome, hoje terra farta, bela e em paz que nos inspira o amor, a igualdade, a honradez, a justiça e a perfeição. Quando o hino acabou senti uma saudade imensa daquele bichinho manhoso e fofinho que me contou toda esta história. Depois entendi que ela era o coração do meu município e que estaria sempre comigo, mesmo que eu aqui já não estivesse pois sou e serei sempre canguçuense.

O livro mágico não voltou mais para a estante e continua aberto convidado a todos para aqui registrarem a sua presença nesta história.

Venha... seja um grande homem, uma grande mulher... ou seja, simplesmente um canguçuense honrado, que ama sua terra e que tudo fará para vê-la crescer com harmonia e paz.

ZULEICA REYES
Enviado por ZULEICA REYES em 05/06/2007
Reeditado em 09/04/2009
Código do texto: T515343
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