Professor

Você talvez se pergunte como eu vim parar aqui. Eu não acredito que tenha parado não, sabe. São tantas as maneiras de não responder a sua pergunta que eu até me perco nos caminhos que ela abre. Queria poder que você entrasse no meu coração, junto aqui, tirasse aquilo que lhe fosse de valia, aprendesse qualquer coisa inútil e pegasse estrada. Tem chão debaixo desse céu, mas se a noite não dá trégua e meu coração não é do chão que seus pés andem, vamos então dividir essa cumbuca d'água antes que o caminho se alume da manhã. Serve o teu, ou lhe faço a honra? Me ensinaram a ser cortês mas fui deixando. A enxada que não vê capim perde o fio. Coração de homem também, mas esse mato é mais denso, senhor. Denso e fechado, mas não tem perigo não. É desses medos que a gente mesmo faz, como todos os outros, quando não sabe bem do que sentir medo. Se eu te dissesse como me disse o professor que todo homem era feito de cinco elementos e mais coisa à toa? Cinco, veja. A água era menos, o ar eram outros, o fogo era outra coisa, a terra podia ou não ser igual e... E acabou-se que os elementos foram todos é destruídos. No ser criança eu pensava que elemento era outra coisa, era uma parte d'agente que somava pr'agente ser isso daqui. Foram me desemburrando aos poucos, como quem vai prendendo uma muda num pau pra crescer reto. A cada martelada eu era um pouco menos de criança e um pouco mais de homem. O professor não ficou muito, e na falta de outro fiquei eu pra três. Era eu e mãe, mas mãe, por ser muita deixou de ser também. Os elementos não aguentam muito firme não, a gente acaba precisando de outros, pra botar o que se tira, ou tirar o que se bota. Me disseram insuficiência renal, não esqueço. Mas cá na mente veio mesmo o açude seco, e a mãe levando o pequeno no lombo pela légua peregrina, como brincava a Geni. Daí eu acho que os elementos não são mesmo muito bons não. Fiquei eu e os cinco com Deus pelos quatro. Tinha fome, tinha. Sede tinha não que o céu chorou toda vida quando mainha desceu. A dor foi tanta que um dia parou mesmo. Deve ter acabado um dos elementos, o que deixa doer. Eu queria ter perguntado ao professor, mas ele agora era eu. Eu que nem estava ainda de copa verde, já tinha que fazer sombra pra três mudas. Geni ajudou com os elementos que podia, mas ali não tinha muito de nada. Minto. Tinha muita falta. Muita falta mesmo. Tinha dia que até noite faltava. A mão tão ralada de cabo de instrumento que eu maldizia deus e perguntava se era com o diabo da mão que eu tinha que arrancar aquele mato. Sempre caia pelas rachas do chão o pingar do ódio que escorria das palavras ditas de cabeça baixa, por medo do sol e de vergonha de olhar pra cima e dar com deus, ele próprio. Professor disse que deus tava era em todo lugar, até dentro da gente. Achar que ele está no céu era besteira então, mas a gente diz essas coisas sem pensar. A gente acha que o que a gente não conhece está onde não podemos chegar, mas numa dessas noites eu parei pra pensar mesmo e vi de outro jeito. O que a gente não conhece está mesmo é onde a gente está. Atrás dos olhos nossos, escondido onde ninguém mesmo encontra, nesses matos altos, silenciosos e vazios. Lá é que está o que a gente coloca, e de lá pro mundo, que o mundo sai todo da gente. E assim eu maldizia a deus, quando pensei e pensando parei. Que maldizer a deus era maldizer a mim mesmo. E que besteira era maldizer esse monte ridículo e torto de cinco elementos que vinha de sabe deus onde e ia pra lugar nenhum? Qual mosca teria de si mesma essa visão tão boa pra dizer que seu caminho era certo? Ou que voava errado? A gente é também meio mosca, meio torto. Minhas mãos já tinham jogado cinco elementos no chão. O sol já descia e sereno me fez ainda mais raiva de pensar nessa minha criatura sem rosto que vinha me botar medos quando eu não achava elementos pros quatro. Ou pros três porque eu mesmo, já me faltava vontade. Eu fico sem saber se já tinha sido assim com mainha. Ou com professor. Eu não sabia porque antes nas noites eu não tinha muita sabença dessas coisas, nem pra perguntar. Perguntasse, talvez tivesse tido alguma resposta. Professor responderia de elementos. Mainha pegaria os dela e olharia professor como quem olha um afasta-medo. Se falta vontade, será um elemento? Achava que não. Vontade não faz ar nem água. Nem comida. Vontade só faz falta. Fui parando de querer. Os três iam crescendo, enquanto eu ia e vinha aqui pensando, matutando os dizeres de professor que falava mais com queixo alto e palavras abertas, grandes. A vontade que eu ainda tinha era de silêncio, mas matava ela também quando um dos três me precisava. Precisão é mais que vontade, porque essa faz. Faz o que quer da gente. Me fez professor de três antes do céu chorar de dor. E me fez professor de mim pra afastar medos meus e adotados. No fim mesmo ele tava certo. A gente tem cinco elementos sim, mas quando saiu o da vontade, ficou o da precisão. Precisando, fiz. Fazendo, fui. E ia sendo ainda, que dos três tinha um por fim. As mãos já eram o mato, as costas a foice. O penúltimo que sobrou me disse que esse sereno era o último, pra eu deitar que amanhã o sol nascia com sombra na porta. Assim fiz. Aquela casa já não era mais tão pequena, mas silêncio assim só teve mesmo quando o céu desabou. Era de calar o mundo aquele peso, nosso mesmo, de cinco elementos e coisa inútil. A tempestade de fora, e dentro da gente o açude fundo, aquele silêncio. Quando todo bicho é morto e a sandália já gastou e a gente para entre duas rachas, respira uma vez só e olha. Naquele dia e nesse o silêncio dentro era igual. Nunca vi coisa se repetir assim, nem nunca vou ver. A noite não veio, só tem noite quem tem mãos como as que tive. De manhã acordei pra ver sombra na porta. Era mais alta que eu lembrava, tinha chapéu de palha gasto, mas a sandália era nova. Eu disse que ele ia pra longe. Assentiu. Levantei e disse que fosse. Dei dois passos avante, que foram mais légua que a peregrina. Sem uma criança no lombo, só mainha e professor. Ele não lembra. Só eu vi se repetir aquele anoitecer. Abracei pequeno. A gente que nasce pobre não tem grandes abraços, nem sabe ser professor como deve, mas faz sem saber coisas que não tem elementos não, e nem precisa: Já temos todos os cinco. Ele virou e foi. Eu sentei. A porta ficou aberta e o sol subiu. Poeira entrou na casa, em mim. Eu podia ter ido. Pra onde? Fazer o quê? Essas mãos de sangue que já nem dobram mais pra rezar, que bem fariam? Já fizeram três, agora é o mundo. Geni estava em casa, bem mal. Fui acudir. Envenenamento por mercúrio. Elemento errado, diria professor. Pena que não sei os certos. Enterro foi breve. Voltei pra casa. Silêncio. Noite. Era estranho, noite. Levantei tarde, fui arrancar mato. Toda a solidão do mundo nunca foi tão completa. A enxada caiu no chão. Não pelos calos nas minhas mãos, mas pelos calos na minha alma, que sangravam. Nunca tinha capinado lote tão grande. A gente vai se acostumando com as bordoadas até que um dia se lança mão do chicote. Professor, Geni, mainha e os três. Eu tinha os cinco elementos mais fortes do mundo, mas dentro da gente, com o que a gente mesmo engendra ninguém pode não. Ajoelhei no chão. Não ia rezar. Não pro deus que eu criei. Arranquei os matos com a mão até os cortes mancharem de vermelho a rachadura do meu rosto. Me viram ali de canto, quando o sereno já vinha. Estava em paz comigo e ia ver noite chegar, pensei. Mas noite não veio, só silêncio. O homem me disse alguma coisa com respeito. Acho que se respeita um homem de cinco elementos. Talvez ele não soubesse que também tinha cinco. Disse pra ele. Não lembrava a última vez que tinha andado em lombo de jegue, mas dava pra saber que o mundo parecia maior que isso. E chapéu de professor na frente com mainha de lado eram sol e horizonte. Agora era noite. Pegaram minhas mãos, e passaram água que mainha não bebeu. Repetiram isso no meu rosto. Eu já não queria resistir. Me perguntou se eu sempre morei onde morava. Disse que não, que antes eu era vizinho de Geni, filho do professor com mainha, professor de três que não se encontravam e tinha uma enxada que usava pra capinar até ontem. Eu larguei a enxada e capinei o mato com a mão até que os calos da alma arrebentassem e sangrou pelas mãos minhas. Este homem me viu e me botou em lombo de jegue, pelo que sou muito agradecido, e assim eu vim parar aqui.

Sei.

Sei o que significa insuficiência renal sim senhor.

Tive um ótimo professor.

iKuartz
Enviado por iKuartz em 02/03/2015
Código do texto: T5155809
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