Alguém na janela

Desculpem-me, caros amigos, se hoje não lhes trago nenhuma conversa agradável ou até mesmo divertida. Hoje trago minha dor exposta, como uma ferida aberta. Doem meus membros, minha cabeça gira. Não leiam isso como prólogo de um romance nem como um conto. Não faço destas minhas palavras ficção. Nada é ficção quando se expulsa o narrador pela porta dos fundos. Abriria a porta de entrada e fugiria para o meio da tempestade. O narrador está encolhido na casinha do cachorro. Sabe-se lá quando vou chamá-lo para sentar-se comigo à mesa de jantar. Quando o convido, ele tem o péssimo costume de interferir nas minhas palavras. Assim, como-as sempre com tempero. Hoje, quero a comida insossa. Então, caros amigos, sou hoje apenas eu, assim com esta triste ferida aberta que tem me sangrado há dias. Não penso em suturas, longe disso! Quero que este sangue negro das decepções diárias escorre perna abaixo e crie poças de piche, como, se de longe, me vissem pavimentando a estrada por onde tenho me arrastado. Ah, como doem certas coisas! É tão difícil escapar pelos bastidores! As cortinas descem e ainda represento esta tragédia! Chega! Chega! Ouço o narrador me chamar pela janela. É a fome. Confesso que gostaria de matá-lo de inanição. Trancaria para sempre as portas e qualquer outro meio por onde pudesse invadir o meu espaço. Ah, minha dor! Esta dor de ter que suportar tudo! Não quero mais andar pelas calçadas nem olhar a cidade, pois é incrível como há situações interessantes para se colocar numa narrativa, mesmo que despojadas de qualquer estética agradável. Chega! Não me lêem dessa forma! Não sou narrador, sou eu aqui de carne e osso! Claro, não vou mentir que às vezes gostaria de ser como o narrador, pois poderia estar inventando toda esta lamúria, de modo que inventando nada me doeria. Poderia atribuir tudo o que estou agora sentindo a um personagem qualquer. Assim, nada teria a ver com isso: cada um com sua cruz. Mas não! Sou um ser, sou alguém que vive, que sente, que tem o desejo até mesmo de que se encerre de uma vez por todas esta história. Até então, este maldito narrador, me olhando da janela, tinha a chave da porta, de todas na verdade. Agora, eu o roubei, ainda que eu não seja o vilão. Mas até quando vou suportar esta dor de ficar sempre à mercê de alguém que não faz outra coisa senão interferir nas minhas ações? Porra, quero viver!

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 06/06/2007
Reeditado em 07/06/2007
Código do texto: T516247
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