FLORES DO MAL

Judith me passa a última ponta ainda em brasa, levanta-se num salto e pega a mochila sobre o sofá.

- Desculpa, Otávio, mas tenho que ir embora. Estou atrasadíssima.

- Um minuto apenas.

- É sobre aquilo que você queria me mostrar?

- Esta aqui.

- Uma mancha no chão?

Mas eu a chamo de mácula, não digo isso a ela. Não ainda.

- Uma sujeira qualquer. Limpa isso logo.

- Um sinal que poderia contar muitas historias. Soube que os antigos inquilinos tinham muitos filhos.

- Crianças gostam de barro, chocolate... Gostam de sujar as mãos e as paredes.

- Você está insinuando que este sinal não passa de uma lama fina e inconsistente?

- As crianças às vezes são assim, inconsequentes.

- Discordo.

- Você não quer enxergar o óbvio.

- Esse borrão poderia muito bem ser do batom de uma mulher disparatada.

- Que gostava de colorir os lábios e saracotear por ai? Isso é bem típico de vocês homens.

- Imagine um casal com muitas crianças vivendo num lugar tão apertado. Deveria brigar constantemente...

- Por causa das crianças inconsequentes?

- Eu não consegui encontrar o marido nessa mancha.

- Mas ele esta em todo o apartamento.

- Como assim?

- No assoalho de madeira. No encanamento. Nas pequenas instalações mal feitas.

- Se o homem tivesse matado as crianças e a mulher?

- Como?

- Se ele tivesse matado todas elas?

- Haveria outras manchas pelo apartamento...

- Talvez sim, talvez não.... quem pode afirmar com certeza? Um bicho acuado é capaz de fazer qualquer coisa.

Entre os homens como em qualquer outra espécie de animais há um resíduo de abortados, de doentes, de degenerados, de fracos. Aquela mancha poderia facilmente ser de sangue.

- Não sei ao certo... Mas olhando bem, ela me revela o vigor sexual.

- A virgindade?

- O orgasmo!

- A menstruação?

- Não é estranho que essa mancha nos tenha levado a formular toda uma serie de perguntas? Quem afinal vem aqui nos interrogar? Que parte de nós tende para a verdade?

Judith se irrita e ameaça ir embora novamente. A velha Docs Shoes nos pés e a longa saia florida arrastando pelo chão. Mas não deixo. Insisto para que fique. Ela retira um colírio da mochila e pinga nos olhos.

- Conte-me então o que aconteceu aqui de verdade, Otávio?

A busca pela verdade, pelas coisas exatas, que nos conduz a muitas e perigosas experiências. Essa famosíssima veracidade de que todos os filósofos sempre falaram respeitosamente, quantos problemas já me causaram! Problemas singulares. Malignos. Ambíguos. Que não consigo evitar. É mais forte do que eu.

- Você nunca tentou lavar essa mancha ai do chão?

- Não.

- Você tem um escovão?

- Tenho. Mas você vai querer lavar o chão agora?

- As suas finalidades estavam fixadas com a máxima precisão, não é?

- O quê?!

- Sei o quanto você é sozinho. Vivendo da própria sombra, se alimentado dela. Não sou sua namorada, amante, amiga, talvez jamais serei e nem quero. Sei que você também não quer. Sei pela maneira como me olha. Esse olhar... homem nenhum me lançou antes. Talvez por isso eu esteja aqui. Toda vez que venho você me oferece essa erva. Talvez esteja me dopando aos poucos. Me viciando sem eu saber. Quando vou ver, já estou aqui novamente bebericando na bacia como um passarinho. Terminada a parte afirmativa do seu objetivo, surge agora a meta negativa.

Judith me encara com seus cabelos armados de bruxa Bellatrix. As janelas trancadas. A névoa. Estou cansado e chapado demais para querer fugir.

- Olha aqui, Otávio, nós dois sabemos que isso não é sangue. Apesar de você querer muito que seja.

- Você vai conseguir me perdoar algum dia? Pelo que pensei em fazer com você?

- Não se preocupe. Se a isca não foi abocanhada, a culpa não foi sua. Não havia peixe.

F Mendes
Enviado por F Mendes em 21/03/2015
Reeditado em 24/11/2023
Código do texto: T5178088
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