O síndico (março de 2015)

Ele sofria de depressão nervosa. Em uma bela manhã de quarta-feira, às dez horas da manhã, as cortinas de seu apartamento ficavam todas fechadas. Dizia aos outros, caso alguém perguntasse, que a claridade doía-lhe os olhos. Para ele, conviver com a penumbra era imperativo. Também, acreditava ele, seria melhor assim para o seu único amigo, um pequeno hamster albino.

Sim, Rafael Gusmán vivia sozinho com um hamster todo branco e de olhos vermelhos em uma apartamento amplo, com uma suíte e um quarto que transformara em escritório – neste, ficava o depositório da gaiola onde o animalzinho vivia. Não estava muito claro se o bichinho se opunha à claridade do dia, estava sempre bem quieto, mas Rafael pensava que sim.

O roedor chamava-se Sr. Sidney, e era um pequeno comedor voraz. Comia praticamente tudo o que lhe desse Rafael, mas sua comida predileta era o arroz cozido que comia uma vez ao dia. O dono do bichinho divertia-se, assistindo-o correr em uma pequena roda de metal no formato de uma roda gigante em miniatura dentro da gaiola.

Rafael Gusmán julgava nunca mais partilhar o convívio com outro ser humano. Por isso investia todo seu tempo livre a cuidar do bichinho que mantinha no apartamento. Sua depressão nervosa chegara ao ponto de ameaçar seu ganha-pão. Era extremamente difícil ter que lidar com os condôminos do edifício em que morava e onde era o síndico.

Seu vocabulário para com os condôminos era pequeno, repleto de pausas cortantes. Cercado de sutilezas, impedia que seu convívio com outras pessoas nas dependências do condomínio atravessasse o limite da conversa retórica e da boa educação. Tentara uma e outra vez buscar ajuda: Sua doença nervosa trazia para si grande sofrimento.

Havia como cinco anos que a doença começara a se apossar de Rafael. Deu-se conta um dia de que as pessoas que passavam por seu caminho sem cumprimenta-lo feriam-no mortalmente. Os dias foram se passando, depois se passaram meses e anos; crescia o mal-estar e sentia no seu peito uma dor pior em cada encontro.

Para cada pessoa a quem cumprimentava e não lhe devolvia o cumprimento havia uma punhalada em algum lugar próximo do coração. Aquelas punhaladas das moças mais jovens, gente que normalmente era meticulosa no trato social, eram as piores. Doíam muito também as grosserias quando vinham dos mais velhos. Tudo sem aparente razão.

Fantasiava: Não gostavam dele por conta de sua posição de subalterno. Tinham com ele uma relação especial que não permitiria a intimidade compartilhada de um “bom dia”. Mas aí, também, pensava que tudo era culpa sua. Provavelmente não tinha sucesso ao transmitir o sentimento de que desejava uma boa jornada a alguém.

Bom, mesmo sendo a contragosto procurou um psiquiatra que lhe absolveu da necessidade de tomar comprimidos, mas que foi taxativo ao recomendar que procurasse tão cedo quanto possível um psicólogo. Rafael correu para casa com uma lista de profissionais para mostrá-la ao Sr. Sidney. O animal pareceu contente, correndo na esteira redonda em miniatura.

Mas, um ano se passou e Rafael não ligou para nenhum psicólogo de sua lista. Guardava para a segunda-feira sempre a mesma desculpa: Procuraria, no começo da semana, um profissional. No entanto nunca fez isso, e seguiu lutando com si mesmo pela sanidade mental frente a um mundo cercado de personagens de quem dependia para o sustento: Os condôminos.

Aparentemente, Rafael Gusmán era muito feliz ao disfarçar seu desconforto e contar mentiras sobre seus hábitos solitários nada saudáveis. Chegou mesmo a inventar para alguém que tinha uma namorada: Espalharam a notícia por todo o prédio. Um senhor idoso, que morava com a esposa, chegou ao ponto de cumprimentá-lo por isso.

Seu mal-estar sempre retornava e havia mais de um ano que desistira de cumprimentar alguém. Quando topava pelas dependências com alguém insistia apenas em um tímido “olá”. Depois, ferido, retornava arquejante para seu bichinho silencioso, retornava para o apartamento e para o Sr. Sidney. A procura por um psicólogo sempre ficava para depois e nada.

Uma noite, enquanto alimentava o hamster, alguém tocou a campainha. Rafael deu-se conta de que era sábado e que seu expediente já havia terminado. Portanto, resistiu em abrir a porta por um momento, mas tocaram a campainha de novo. Rafael Gusmán não viu outra saída, senão abrir a porta a quem quer que fosse. Certamente, era alguém que necessitava de sua ajuda.

Saltou primeiro em sua frente, para dentro do apartamento, a vizinha do 301; vestida de bailarina. Saindo de trás dela, veio o vizinho do 404 vestido de pirata, e pendurou-se em seu pescoço lançando um beijo redondo em sua bochecha. Depois, entraram no apartamento os vizinhos de outros quatro apartamentos, todos muito alegres e, talvez, um pouco alcoolizados.

Um vizinho adiantou-se a falar: “Acaso não sabia que neste condomínio haveria quem o observasse?” “Pois cá estamos, para dividir contigo um copo de vodca, e veja lá se toma um copo!” “Alegria, Sr. Gusmán, vamos!” E Rafael Gusmán aceitou um copo e mais outro, apontando para o sofá da sala para que todos se acomodassem. Era um baile de carnaval.

Realmente, o contato humano dos vizinhos muito lhe surpreendeu. Não esperava um gesto amigo e, durante as duas horas que estiveram com ele, não conseguiu dissimular o quanto estava surpreso. Ele estava boquiaberto porque causava estupor imaginar que percebiam o seu mal-estar quotidiano, nos dias de trabalho. Haveria quem o visse de verdade e aquilo era novo.

Depois que o deixaram, Rafael se permitiu apagar a luz da sala, ficando acesa apenas a luz da gaiola de Sr. Sidney. Precisava apagar a luz, precisava da escuridão para refletir. Tomou à mão um pouco do arroz cozido de seu hamster, fazendo uma pequena bolinha; e jogou-a para o animalzinho através de um buraco da parte de cima do casebre metálico.

O carnaval das visitas fora expressão da mais pura solidariedade. Intencionaram comunicar a Rafael Gusmán, nas palavras deles: “somos tão lelés quanto o amigo”. Pois ele havia passado anos na preocupação de que o desprezavam, e em um instante só caíram-lhe todas as certezas. Foi aí que abriu a gaiola, pegou o Sr. Sidney pelo rabo e o engoliu. E morreu engasgado.