Meus Bons Amigos



Seu Manuel, o português dos bilhetes de loteria, e o Japonês das Calças Largas, eram meus “carmas” quando eu resolvia trabalhar com meus livros em frente ao Itaú C.T.O. na Mooca.
Seu Manuel era o primeiro a chegar. Sempre risonho, cumprimentador, gostando muito de conversar, dava o bom dia, mostrava que estava com as mãos cheias de bilhetes que poderiam tornar-me bem de vida, e logo punha-se a despejar em meus ouvidos suas “pérolas” bem cultivadas. E o fazia em voz baixa, com uma das mãos em frente à boca quase sem dentes, misturando risadas com frases do tipo:
- Saves qual é o nobre da Inglaterra que tem o nome de uma peça do bestuário?
Claro que eu não sabia. Nunca soube, em toda minha vida, sobre alguma rainha Camisa, um príncipe Roupão, uma Baronesa Cueca, ou coisa parecida.
Ele deixava que eu pensasse por algum tempo, depois esclarecia risonho, feliz por ter-me pego em minha ignorância total:
- Ora pois, era só teres pensado um poucochinho mais: o príncipe “Xale”,viúvo da Diana, oras.
Em outros dias ele me transmitia, sempre com uma das mãos tapando a boca, sempre sorridente e esclarecedor:
- Saves que as pissoas que têm os cavelos repartidos para os lados respeitam os pais e são respeitados e ovedecidos pelos filhos, e que os que têm cavelos penteados para trás são reveldes, não obedecem aos pais e os filhos também não lhes ovedecem? Ovesservei muito a respeito disso. Podes reparaire tambaim e vais vere que estou certo.
Seu Manuel era bonzinho, era risonho, era simpático, mas cá pra nós, havia que ter paciência pra “agüentaire uma “pissoa” que não parava de falar comigo nem mesmo quando meus bons clientes e compradores começavam a chegar e a querer gastar. Não havia meio do homem se tocar que estava sendo inconveniente.
Um dia, sem nem sequer estar me lembrando de seu Manuel, uma idéia pintou em minha cabeça. De repente eu soube como fazer para que ele sumisse de minha vista quando eu assim o desejasse. Fácil, fácil mesmo. E eficiente.
Na primeira oportunidade, assim que meus clientes começaram a chegar próximo à minha exposição em frente ao Café Mania, virei-me para o seu Manuel e pedi:
- Seu Manuel, o senhor que é um europeu, uma pessoa mais inteligente e preparada que nós, os brasileiros, tem uma dicção excelente, por favor, diga depressa para mim, mas bem depressa mesmo: ácidodesoxirribonucléico.
- Ora pois, tu estás a inventaire palabras...
- Não estou não, seu Manuel, É ligado ao DNA.
- Essas coisas do governo eu não entendo não. São muito complicadas e eu deixo.
Acabava de se explicar e se mandava, ao ver que eu insistia em que ele repetisse depressa a palavra que com tanta facilidade eu pronunciava.

Quando seu Manuel estava longe, vendendo seus bilhetes em outra freguesia, chegava o Japonês das Calças largas.
Miudinho, extremamente cabeludo, mais feio que bater na mãe por causa de trocados, ele parava à minha frente, encarava-me calado e, ao mesmo tempo, com as mãos nos bolsos, batia as pernas das calças com um barulho de irritar qualquer um pela constância e pelo ritmo.
Muitos minutos depois resolvia comunicar-se comigo:
- Sabe aqueles pares de tênis que as pessoas jogam nos fios de eletricidade? Aqueles pares que ficam balançando pra lá e pra, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, pra cá e pra cá, pra lá e pra lá...
Muitos “pra lá e pra cá” depois, muitíssimos mesmo, ele continuava:
- Jamais passe por baixo de um deles. Aquele movimento dos tênis causa câncer se a gente ficar exposto a ele.
Eu agradecia a informação, pegava meu livro e voltava a ler, tentando livrar-me dele.
Não adiantava. Ele voltava a bater as pernas das calças até que eu levantasse os olhos e o visse olhando pra mim.
Aí me fornecia uma nova informação:
- Um dia a pomba ficou vinte e dois minutos na porta entreaberta de minha casa tomando raios gama. Depois que ela saiu o gato ficou no lugar onde ela estava e ficou ali trinta e um minutos recebendo raios beta. Nisso o urubu voou e passou pelo meio dos dois prédios.
Vendo que esperava por uma manifestação minha, não me fazia de rogado:
- Falou...
Ele então batias as pernas das calça mais algum tempo e depois sumia de vista.
Livrei-me dele da maneira mais inesperada possível.
Um dia, depois de despejar algumas centenas de palavras completamente desconexas em meus ouvidos, ele parou de repente e me perguntou:
- Quando você vai ao psiquiatra, ele te dá injeção com seringa grande?
Respondi a verdade:
- Eu nunca fui a um psiquiatra.
Gente, sem exagero algum, o japonês levou um susto tão grande, recebeu um choque tão inesperado, teve uma surpresa tão absurda para ele que juro que seus cabelos se eriçaram todos em sua cabecinha minúscula:
- VOCÊ NUNCA FOI AO PSIQUIATRA??????????????????
- Nunca. Porquê?
- Por nada, por nada, por nada...
Depois do terceiro “por nada” ele saiu às pressas de perto de mim e nunca mais se aproximou. Deve ter-me achado com jeito de louco incurável, tão louco que nem mesmo ao psiquiatra queria ir. Melhor evitar-me. Com louco, todo cuidado é pouco.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 08/06/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T518308
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