"Otoridade" = Histórias de Amor Safado"

O diabo daquele ônibus não corria estrada afora. Arrastava-se. E minha impressão era a de que o motorista queria guardar na memória cada quilômetro percorrido. Não que eu seja amante da velocidade quando minha vida está nas mãos de outros, mas aquela moleza era absurda e inexplicável.

Muitos quilômetros depois, não conseguindo conter a irritação, levantei-me fui até o motorista:

- Como é que é, amigo? Está querendo bater algum recorde de atraso?

Ao ver a cara do homem, entendi, no ato, o porquê da moleza: ele não se agüentava de sono, seus olhos custavam a manter-se abertos e ele cabeceava ligeiramente ao tentar falar comigo. Aí eu engrossei de vez:

- Pare agora mesmo no acostamento! Vamos, cara, pare logo, depressinha mesmo.

- Não posso, moço. Tenho que chegar pelo menos até o próximo posto de gasolina.

- Você não vai chegar a lugar nenhum. Ou você para agora ou eu vou te puxar do volante na marra.

Outros passageiros aproximaram-se, fizeram coro comigo, e o motorista encostou o veículo no acostamento. O coitado parecia bêbado de tanto sono e cansaço.

-Vá dormir um pouco, motorista. A gente dá um jeito de chegar ao posto.

- Pelo amor de Deus, amigo! Se alguém dirigir esse ônibus eu perco meu emprego.

- Melhor você perder o emprego do que a gente perder a vida. Ou você acha que vamos ficar parados aqui, durante toda a madrugada e sujeitos a assalto? Vá dormir que eu levarei o ônibus até o próximo posto. Nos últimos bancos tem jeito de você se esticar a puxar uma palha.

Vendo o jeito decidido dos passageiros, o pobre coitado acabou obedecendo e eu peguei o volante do ônibus e torci a chave.

Quinze ou vinte minutos depois parava o enorme veículo em frente ao restaurante do posto de gasolina quase matando muita gente de susto graças à “graciosidade” com que o parei de repente. A menos de quinze centímetros da parede de vidro do estabelecimento.

Desci do ônibus ensopado de suor da cabeça aos pés e logo alguns passageiros vieram cumprimentar e agradecer.

- Não há de que, amigos. Afinal de contas eu também estava correndo risco. O coitado do motorista está morto de cansaço.

- É...nesta época do ano eles trabalham demais mesmo. Mal acabam de chegar e já têm que viajar de novo.

- Tudo em defesa do lucro dos donos da empresa. Pouco importa a vida da gente...O senhor é motorista de ônibus também?

- Foi a primeira vez que dirigi um.

- Está de parabéns! Dirigiu muito bem. Muito bem mesmo. Só na parada, agora, é que deu uma rateadazinha...

- Os freios demoraram um pouco a pegar. Foi só isso.

Na verdade eu dirigi o tempo todo suando frio, com o maior medo de dirigir aquela coisa enorme, e rezando para que não tivesse que fazer alguma manobra mais elaborada para parar no posto. E medo maior ainda eu senti quando percebi que os freios não obedeciam logo ao meu comando e a parede do restaurante crescia em direção a mim. Mais um segundo ou dois e teria entrado estabelecimento adentro, levando tudo de arrasto. Mobiliário e freguesia.

Meia hora depois outro motorista substituiu o sonolento, todos nós passageiros retomamos nossos lugares, e uma moça bonita aproveitara para viajar conosco ao conseguir um lugar vago. Ao meu lado.

- Com licença, moço. Esse lugar está vago, não está?

- Se não estivesse, moça, eu o desocuparia para você nem que fosse a tiros.

Ela riu, sentou-se e logo começou a conversar simpaticamente:

- Fiquei sabendo que você foi o herói da noite. Viu o motorista quase dormindo e dirigiu o ônibus até o posto.

- Herói só por isso? Bobagem. Só o que fiz foi dirigir essa coisa por alguns quilômetros.

- Como é que você percebeu que o motorista estava dormindo?

- Quase dormindo. Vi que o ônibus deu algumas “dançadas” na pista e que estava indo muito devagar. Cheguei perto dele e percebi que não estava bem. Por falar nisso, você não acha que esse motorista está indo muito depressa? Me parece que ele está abusando da velocidade.

- Está mesmo. Está até me dando medo.

Mais uma vez lá fui eu corredor afora até o motorista. E já cheguei falando grosso:

- Maneire na velocidade, amigo. Você está abusando.

- E quem é o senhor pra me dar ordens?

Puxei minha carteira, abri-a e perguntei se ele queria parar o ônibus para ler a carteira e saber quem eu era. Ele preferiu não parar e fizemos o resto do percurso em paz. Em boa e segura velocidade.

Voltei a sentar-me perto da moça, apresentamos-nos, conversamos e rimos muito, sentimos sono e nos ajeitamos um no outro, o frio apertou e a gente se apertou também, apareceu um cobertor de uma de nossas malas, e lá fomos nós estrada afora bem felizes, carinhosos, “sastifeitos” da vida até a, felizmente, ainda longínqua São Paulo.

Na “rodoviária-formigueiro” desta nossa capital, o motorista esperou que eu desembarcasse para perguntar-me gentilmente quem eu era afinal de contas:

Bati continência antes de informar:

- Soldado Brandi, 1692, ex-recruta do Exército Brasileiro, retornando à vida civil e às suas ordens.

Eu e a moça rimos durante todo o longo percurso até o táxi. Ela me disse que se sentia bem mais segura chegando a São Paulo ao lado de uma alta patente militar. E rimos mais ainda.

Mas que aquela minha carteirinha preta impunha respeito, naquela época, no auge da ditadura, impunha. Pelo menos enquanto alguém não lesse todo o conteúdo.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 08/06/2007
Código do texto: T518822
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