Ariano Puro

Minha Kombi, lotada de coisas pesadas que eu havia comprado em Tiradentes, Prados, São João d´El Rey e adjacências, subia penosamente um trecho íngreme da então famigerada Fernão Dias da década de setenta, e um calor de rachar coquinho fazia com que subissem ondas brilhantes do asfalto, dificultando a visão.

Ao longe, bem ao longe, avistei uma figura esguia, muito clara, muito loura, fazendo sinais de quem pede carona. Pensando que era uma lourinha, parei a Kombi e quase arranquei novamente ao ver que era um rapazinho. Esse negócio de carona para homem nunca foi coisa que me agradasse, mas fiquei com pena do camarada, curtindo aquele solão sem proteção alguma, e deixei que embarcasse.

Estava na cara e no sotaque que era dos lados do sul:

- Tu me levas, amigo, até Pouso Alegre?

- Levo. Não precisa bater a por...

Já era tarde. O desgraçado bateu a porta como se quisesse pregá-la de vez no lugar. Já começou me irritando...

Viajamos calados até o momento em que um senhor negro atravessou a pista correndo e eu diminuí a velocidade para não atropelá-lo. O sujeitinho riu e comentou:

- Diminuístes a velocidade e perdeste a chance de termos um negro a menos no mundo, amigo.

Isso vai dar encrenca...

- Pelo jeito o amigo não gosta de negros.

- Queres sinceridade, compadre? Não suporto negros nem a quinhentos metros de distância.

- Eles lhe fizeram algum mau?

- Nem eles nem os judeus, mas não nem imaginar a proximidade deles. Causam-me um asco tremendo.

- Preconceito puro e simples, então.

- Mas com motivos, amigo. Com motivos. Basta que analises o quanto de mal a raça negra fez a este país e verás que tenho razão.

- Um dos males, por exemplo.

- Um deles, o pior de todos, foi denegrir a raça brasileira. A miscigenação, com o negro e com o índio, fez do brasileiro o que é, ou seja, uma raça fraca, indolente, irresponsável. Principalmente fraca de caráter e mesmo fisicamente.

- Você acha mesmo? No duro? Então a raça negra é responsável por isso?

- Tenho plena convicção do que lhe digo, amigo.

- Não me chame de amigo, carinha. Eu não sou amigo de gente besta como você, sujeitinho. Tão besta que sai enunciando seus preconceitos imbecis sem nem ao mesmo saber quem está escutando suas merdas.

- Que eu saiba é só tu que me escutas neste momento, e tu não és negro, e nem judeu ao que me parece.

- Impressão sua, cara. Não estamos sozinhos. Meu ajudante está te escutando e quando eu parar o carro ele vai te pegar e te ensinar a não ser imbecil além dos limites.

Parei a Kombi e meu passageiro desceu assustado. E mais assustado ficou quando meu ajudante, o Luciano, negro lustroso, ex-boxeador, e chegado a uma boa briga, abriu as portas do meio da Kombi e desceu de cara fechada e punhos cerrados.

Em poucos minutos o loirinho preconceituoso levou uma surra de criar bicho e ficou chorando na beira da estrada. Acho que o Luciano estava com preguiça. Bateu pouco. Se ele estivesse disposto o cara teria ficado ali desmaiado.

Fiquei bobo ao ver um cara que pertencia a uma “raça superior”, ariano puro, boa pinta, chorando na beira da estrada como uma criança.

Será que foi porquê o Luciano extraiu os dentes dele, da frente, sem boticão?

Vai ver foi por isso.

Vê lá se eu daria carona sem que meu ajudante-carregador-segurança e amigo estivesse deitado no banco de trás da Kombi...Não nasci ontem...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 08/06/2007
Código do texto: T518826
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