"...Dicem todos que tu és..." Histórias de Amor Safado.

Apesar do calorão de quase quarenta graus, eu estava ali, firme e forte na calçada, em minha banca de livros, esperando o pessoal da Empresa, sair para o almoço. Era o meu horário de faturamento maior, meu horário de vender meus livros novos e usados. A hora de rever meus clientes e amigos entre os mais de três mil funcionários daquela época. Número que foi minguando graças à “eficiência” dos últimos governos.

Meia hora antes do movimento, um senhor mulato, muito grande, muito forte e muito gordo, aproximou-se de minha banca, examinou, calado, alguns livros ao acaso, e depois perguntou se eram pra vender ou para emprestar. Tive que rir antes de responder. Será que tenho cara de Madre Tereza de Calcutá? De quem enfrenta um sol de rachar pra ficar emprestando livros?

- São quase empréstimos, senhor.

- Como ansim? Quasi pruquê?

- É que meus preços são tão baixos que até parece que estou cobrando aluguel.

- E num tá?

- Não. Estou vendendo a preços baixos.

- O que é que o senhor me aconseia pra minha fia?

- Que idade ela tem?

- Vinte e um, mas num sabe lê.

- Ela tem alguma deficiência?

- A gente até queria que ela tivesse isso, mas é que ela num consiguiu de jeito manera aprendê nem os beabá da vida. E óia que se esforçou-se. Acho que foi farta de deficiência mermo.

- É...quem sabe...a falta de deficiência tem prejudicado muita gente. Ela gosta de pintar?

- Num sei lhe informá. Que tipo de pintura?

- Livrinhos pra pintar. A coleção vem com dez livrinhos e uma caixa de lápis de cor.

- E moça vai gostar disso?

- É só uma sugestão, mas pelo menos é uma maneira de ela ir se familiarizando com livros. Começando bem pelo início...Depois, com o tempo, ela pode passar pra cartilha.

- Ela já tá na cartilha. Nosso pastor diz que vai ensiná ela a lê. Toda noite ela vai encontrá o pastor e vorta toda feliz da vida. Acho que já tá aprendenu arguma coisa boa com ele.

O pastor e a ovelhinha analfabeta...Sei não...

- Ela puxou pelo pai, moço. Eu tamém sempre tive a maior dificulidade pra enfiar na cabeça aquele monte de letrinha pra por em carreirinha uma atrás da outra, mas num mi dei mal na vida não.

- Qual é a sua profissão?

- Sou garimpero. Ou melhor, fui garimpero. Passei minha vida toda nos garimpo da vida e coí muito ôro. Muito ôro mermo. Farisquei diamante tamém, mas ôro sempre foi o meu forte. Tinha orfato pra ôro.

- Uma vida legal. Sempre tive atração por garimpo, mas sempre preferi o conforto da cidade grande.

- É que o senhor não sabe o que é bão nessa vida. Num tem nada mió que garimpar atrás de ôro. A gente sofre, e sofre mutio até, mas tem hora que fica a mió coisa do mundo.

- Claro que é quando encontra ouro...

- Tamém, mas tem tamém as hora de lazere. As hora de disfrutá dos ganho. O senhor nem pode imaginar o quanto eu era gostado no garimpo. Principalmente nos putero dos garimpo. Moço, eu chegava e a muierada ficava dôdia. Era um tanto de abraço, de beijo, de agarramento que o senhor nem pode carculá.

- Caíam todas na sua lábia...

- Tamém, mas elas gostava que eu ia sempre com os borso cheio de ôro e dava de presente pra muierada toda. Elas ficava tudo lôca comigo, moço.

- Charme total...

- Uma vez uma puta de minhas relação ficô ca mãe doente em Sum Paulo, e num é que eu fretei um avião e trouxe a putada toda pra visitá a mãe dela? A muié ficou tão grata e agradecida que nem me cobrou us michê por um montão de vez que trepei com ela.

- E as bebidas? O pessoal nos garimpos bebe pra valer, não é?

- Bebe até querosene se facilitá. Eu ia chegando e pagando pra cambada toda que tivesse nos putero. Era entrá ôro dos garimpo nos borso e saí nos putero pra alegrá a moçada.

- Mas o senhor guardou algum pra garantir o futuro, não guardou?

- Guardei nada, moço. Torrei tudo por lá mesmo. Quem guardô, e guardô bem, foi meu irmão mais véio. Juntô ôro por dimais e veio pra Sum Paulo. Mas aquele num abria a mão nem pra dar adeus de graça. Juntô muntio ôro, veio pra cá e morreu de repente, sem mais aquela. Com o dinhero que ele deixô é que fiz meu pé de meia. Casei, tive os fio, criei juízo, e hoje em dia vivo sossegado. Mas tenho a maió sordade dos meus tempo de putaria. Eu tinha até um apelido legal. As putaiada toda me chamava de Garufinha. Um dia eu perguntei pruma delas o que queria dizê Garufinha e ela me disse que era gente boa, gente fina, homem legal. O senhor conhece essa palavra?

- Garufinha? Não. Deve ser filhote de garufa.

- E garufa, o que é?

- Deve ser gente mais legal ainda. Pai do garufinha.

- Deve de sê...Bem, vô andano. Num vô esperá o pessoar vortá do armoço. Já esperei muntio pur hoje. Ôtro dia eu arresorvo minhas pendenga aqui.

E foi-se. E eu seria besta de dizer pra um camarada daquele tamanho, peso e ignorância, que garufa é otário em espanhol?

Ah, ele levou pra filha a coleção “Colorindo Histórias Clássicas”. Fiz um precinho bom pra ele levá-la para a filha que tinha “falta de deficiência”.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 08/06/2007
Código do texto: T518838
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