Estelinha Nosso Amor, ou Maldade Juvenil.

Mais de meia noite, nós estávamos em quatro ou cinco adolescentes jogando conversa fora em uma esquina do bairro Floresta, em Belo Horizonte. Ríamos um bocado com as bobagens que dizíamos e, estranhamente, havia mais de meia hora que não falávamos sobre meninas, moças, mulheres, barangas, ou prostitutas recém-admitidas na famosa casa da Zezé, o prostíbulo mais famoso da época.

- Gente, minha avó é tão velhinha, mas tão velhinha, mas tão velhinha, que não pode ler a bíblia.

- Não enxerga mais?

- Até que enxerga bem a coitada, mas quando lê a Bíblia ela chora de saudades dos doze apóstolos. Conheceu a turma toda. Até vendeu tapioca pra eles.

- Grande coisa...E minha avó que só entende línguas mortas? Basta você dizer pra ela “est horum du jantarum” ou “papagaium falorum palavrorum” , que ela vem correndo e babando pra mesa, a qualquer hora do dia ou da noite. A gente se diverte “ca” “véia”...

- A minha é a mais velha de todas. Meu pai diz sempre que ela ganhou muito dinheiro vendendo ração pra dinossauros de estimação.

- Pronto, tá decidido. Você ganhou de todos. Tem a avó mais velha e conquistou o direito sagrado de pagar um Cinzano pra cada um da turma. Vamos indo.

- Vamos indo o cacete...Tenho lá dinheiro pra pagar cinzano pra vagabundo?

Preso pelas pernas das calças e pelo pano da camisa, levado “voluntariamente” até o bar mais próximo, o ganhador do concurso inventado naquela hora teve que pendurar cinco Cinzanos pra turma. Nossas surras de brincadeira também deixavam marcas e ele sabia disso. Ninguém ali podia confiar em ninguém. Amigos, amigos, porradas à parte. Excesso de energia juvenil, decerto.

Quando saíamos do bar, nossa musa inspiradora em comum desceu de um táxi e veio, risonha, em nossa direção:

- Pelas caras de safados já vi que estavam falando um monte de imoralidades...

- Acertou na mosca, Estelinha querida. Estávamos falando de sua vida pecaminosa. Maior coincidência você ter chegado exatamente agora. Muita safadeza pra contar pra gente?

- Gente, isso é coisa que se diga? Vim do enterro da minha avó, coitadinha...

- Essa é a quinta vez que você enterra uma avó e chega depois da meia-noite. Pensa que nós num ti vigia, malandra? Quantas avós você tinha?

- Essa era a quinta e última. Agora me contem sobre o que é que vocês estavam conversando tão animados?

- Sobre a última vez que te vimos peladinha.

- Vocês nunca me viram peladinha, seus sem-vergonha.

- Culpa sua. Única e exclusivamente sua. Lembra que a gente já escalou parede de sua casa, que é lisa, sem escada, só pra te ver em seu quarto? Tá lembrada de sua atitude nojenta?

- Estou. Então foi atitude nojenta jogar água em vocês? Foi melhor do que meu pai ter pego todos vocês amontoados na varanda, feito um bando de tarados.

- Sua falta de solidariedade, de compreensão, de amizade mesmo, falando francamente, é revoltante. Que é que te custava? Era só fingir que não percebeu a gente ali, ir tirando as roupinhas, enrolar-se numa toalha e ir para o banho andando devagarinho. Pronto. Depois disso iríamos todos pra casa render uma homenagem solitária à bela Estelinha. Você foi ruim demais com “nóis”, que te amamos tanto.

- Era só isso que vocês queriam mesmo?

- Do fundo do coração de cada um de nós. Todos nós te amamos profundamente e não vemos a hora de te ver como veio ao mundo. Diga olhando nos nossos olhos: isso tira pedaço, tira? Vai te matar fazer uma coisa dessas para os amigos?

Cada um dizia seu argumento e os outros riam apoiando-o enfaticamente. Depois que os olhinhos de Stela iluminaram-se por uma fração de segundos e pareceu-nos que ela estava se rendendo, aumentamos a necessidade, a urgência de vê-la prestando-nos esse favor, e ela acabou mesmo cedendo.

- Só vocês cinco?

- Só. Juro pelas mães deles todos....E pela minha também, pronto.

Todos nós juramos, rejuramos, trejuramos, e Estelinha foi à nossa frente até sua casa, entrou silenciosamente e jurou que poderíamos subir à sua alta sacada dentro de dez minutos. Ela mataria nossa curiosidade desde que jurássemos por Deus que jamais contaríamos a ninguém.

Wanderley, o que morava mais perto da casa dela, correu até sua casa, pegou uma escada e voltou esbaforido. Um minuto depois escalávamos afoitos os degraus e nos amontoávamos na estreita sacada da casa de nossa querida Estelinha e esperávamos ansiosos pelo strip-tease prometido.

A luz do quarto dela foi acesa de repente e ela, no meio do cômodo, começou a tirar lentamente o agasalho, toda cheia de suaves e sensuais rebolados. Depois livrou-se das meias com a mesma languidez, depois de jogar os sapatos, sensualmente, para longe. Os botões da blusa ela abriu um a um, mas sem nada revelar e, de repente, jogou o sutian em nossa direção, ou melhor, em direção à porta da sacada, de onde a olhávamos pelas frestas. Quando chegou à saia, a luz do quarto foi apagada de repente e ficamos ali, respiração suspensa, suando frio, doidos para que a luz voltasse logo e com ela nossa striper.

Que triste e amarga decepção !! Quando a luz voltou todos nós vimos o panacas do irmão dela, gordo, pelado, com o pênis na mão e balançando o membro em nossa direção. Ela havia aprontado conosco e aprontado feio.

Descemos silenciosamente a escada, sentamos-nos na esquina em frente à casa de nossa amada Stela e combinamos naquele momento nossa vingança. Que foi decidida em instantes. Alguns minutos depois que o irmão a substituiu no strip-tease, a rua toda foi acordada com nossa alegre cantoria:

- “Estelinha peladinha/ Que gostosa/ Que gracinha/ EStelinha peladinha/ na varanda/ que lindinha...

O gordo e grande irmão dela chegou à sacada e gritou um monte de palavrões, mas nossa cantoria aumentou, muita gente acordou, e todo mundo quis saber o que estava acontecendo:

- É a Estelinha, dona Margarida. Ela chegou pelada na sacada e ficou chamando a turma toda pra cima.

- Deus do céu! Deixe a mãe dela saber disso...

- Maior sem-vergonha. Nós estávamos aqui conversando sobre coisas sérias quando essa safada fez isso. Chegou peladona na sacada e chamou a gente pra cima. Vê se pode uma coisa dessas...Uma pouca vergonha sem limite.

- Essa nunca me enganou...E meu filho doido pra namorar com ela.

- Deixa não, dona Rose. Estelinha é uma pessoa maravilhosa, mas podendo evitar...

Stelinha chegou à varanda e tentou dizer a todo mundo que era mentira, mas nosso coro era forte e animado. Àquela altura até mesmo afinado:

-“Estelinha peladinha/ Que gostosa/ Que gracinha/ Estelinha peladinha/ Na varanda/ Que lindinha...

Alguns dias depois a família de Estelinha mudou-se para outra casa, em outro bairro distante, e durante muito tempo nenhum de nós a viu.

Um dia eu a vi de maiô no Minas Tênis Clube e lhe dei toda razão em não querer nos mostrar o “corpinho tentador”. Era um corpo pavoroso apesar da extrema juventude. “Trócim”* mal feito, sô...

* Para quem não entende o mineirês: “trócim” é trocinho, coisinha.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 09/06/2007
Código do texto: T519428
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