Um Homem Valente de Verdade = Histórias de Amor Safado.

Aquela minha viagem madrugada adentro corria monótona e sem graça alguma. As três colegas que viajavam comigo em meu carro, uma sentada no banco da frente, ao meu lado, mas quase colada à porta do passageiro, e as outras duas no banco de trás, pareciam disputar entre si um campeonato de mutismo.

Tentei, apenas por delicadeza, entabular uma conversa que se generalizasse, mas não obtendo sucesso logo de início, resolvi viajar calado e prestando atenção à estrada escura. Finalmente liguei o rádio e desliguei-me delas.

Ouvi notícias, algumas músicas, mais notícias, mais músicas, até que resolvi procurar uma estação que me agradasse realmente e, virando o dial pra lá e pra cá, acabei passando por uma onde uma voz de mulher iniciava uma história de terror e garantia que todos os ouvintes ficariam de cabelos em pé ao ouvi-la. Deixei o ponteiro parado naquela estação e passei a escutar com atenção a história, que começou mais ou menos assim: “Naquela estrada escuríssima, de péssimo asfalto e muita vegetação lateral, espessa, de ambos os lados, um homem viajava em seu carro. Viajava em seu carro e levava com ele três belas moças. Três belas moças que iam caladas, absortas em seus pensamentos, pensando talvez em seus namorados, maridos, amantes, quem sabe? e nenhum dos ocupantes daquele veículo automotivo pronunciava uma única palavra. Silêncio total. Silêncio pesado. Silêncio sem barulho. E os quilômetros se sucedendo, um após outro, a cada mil metros exatos. Curvas sinuosas para ambos os dois lados, subidas em fortes aclives, descidas em violentos declives, e a paisagem “obnubilizada” pela noite escura, e sem qualquer tipo de luz ou iluminação, nem mesmo a tênue e fraca claridade da lua surgindo naquelas horas avançadas da madrugada. Um vento frio, gélido, cortante, penetrante mesmo, penetrava no veículo, balançava os longos cabelos de uma das moças e parecia trazer uma mensagem do além...”

Vendo que as moças não riam e pareciam prestar muita atenção na história, caladas, quase hirtas em seus lugares, contive o riso durante a narração e não comentei sobre as bobagens que acabara de ouvir: aclives ascendentes, descidas em declives, quilômetros a cada mil metros exatos, etc. Fiquei calado e continuei prestando séria atenção à fantasmagórica história: “uma mensagem terrível do além, uma mensagem da outra vida após e depois da morte, uma mensaaaaagem que alguns espíritos do bem queriam transmitir aos ocupantes daquele veículo onde viajavam três lindas jovens e um homem que ia ao volante..” . Lembrei-me das três ocupantes e a nenhuma delas eu daria a classificação de linda. Quando muito, bonitinhas. “O belo homem que ia ao volante era alto, forte, de dentes brancos, fortes e alvíssimos, e um olhar que magnetizava o sexo oposto como um imã...” – Bem, o motorista da história também nada tinha a ver comigo- “de repente, não mais que de repente, repentinamente, uma das moças, uma das moças que ocupavam o veículo automotor, mais sensível que os demais ocupantes que viajavam no carro que a todos conduzia, sentiu, sentiu mais do que ouviu, uma voz sussurrante sussurrar baixinho em seu aparelho auricular direito uma mensaaagem terrível: vocês todos falecerão em um pavoroso acidente fatal e mortífero nesta mesma madrugada sem lua...”. – Uma das moças manifestou-se lá atrás: “ Coloca música. Essa história boba está é me dando sono.”- Fiz sinal a ela de que se calasse e aumentei um pouco o volume para não perder a continuidade: “ um acidente tão terrível, tão pavoroso, tão monstruosamente monstruoso que não sobrará osso sobre osso, dente sobre dente, olho sobre olho. E tudo isso acontecerá depois que uma mulher alta, branca, usando um vestido de cor berrante, atravessar a estrada, sorrir em direção ao carro e sumir na vegetação lateral ao lado da estrada...”.

Eu ria por dentro, mas não emitia som algum para não perder nada daquela bobajada que devia ter sido escrita por um dos “fabulosos talentos a serem descobertos que abundam neste país” e também porquê, cá pra nós, quando você ri de uma coisa que os outros não perceberam que é engraçada, corre o risco de passar por idiota. E aquelas três moças, fingindo que a história as incomodava, estavam mesmo era começando a morrer de medo do conteúdo do besteirol que ouviam.

A narradora empostava a voz, fazia-a ficar de acordo com o que ia contando e creio que conseguia o efeito desejado nos ouvintes que a levavam a sério e, sem malícia ou senso de humor, iam ficando assustados à medida em que a coisa ficava “mais e mais assustadora”.

Doido para rir, pra cair na gargalhada, a fim de comentar sobre as redundâncias, sobre as palhaçadas, sobre a fraqueza do texto, eu desanimava quando me lembrava que nenhuma delas deixara ainda escapar uma única risada curta, um único comentário irônico ou de gozação. Vi logo que estavam cada vez mais assustadas com a história besta, capaz de assustar apenas crianças que não conseguiam dormir no escuro.

Faltavam apenas uns dois ou três quilômetros para nossa primeira parada, que seria em um posto de gasolina onde faríamos um lanche rápido, quando vi alguns galhos grandes de árvores colocados no leito da rodovia a espaços regulares. Sabendo que isso era sinal claríssimo de acidente à frente, diminui a velocidade sensivelmente e fiz a grande curva bem devagar, quase parando, procurando enxergar o que havia acontecido.

Exatamente no momento em que eu terminava a curva e começava a acelerar na reta à minha frente, ainda sem ver sinal do acidente avisado, uma mulher usando um vestido de um vermelho vivíssimo atravessou a pista, olhou para o meu carro e sorriu antes de sumir na vegetação “lateral ao lado da estrada”. Uma fração de segundos depois três mulheres berravam loucamente dentro de meu carro, agitavam-se dentro do veículo como galinhas levando choques fortíssimos e gritavam coisas desconexas.

Foi um custo acalmá-las. Foi um custo convencê-las de que aquilo era bobagem. Foi a maior facilidade convencê-las, algum tempo depois, de que o melhor que tínhamos a fazer era nos ajuntarmos todos em uma única cama de casal que eu conseguira no hoteleco ao lado do posto de gasolina para esperar a manhã chegar. A manhã, o dia claro quenos permitira prosseguir a viagem tranqüilamente, sem sustos e sem fantasmas.

Que delícia de experiência...Eu, o macho valente, de sangue frio, protetor das fêmeas, embolado entre elas, protegendo-as das forças do além, acarinhando uma, beijando outra, acalmando a terceira com longos afagos, e finalmente dormindo profundamente enquanto as três disputavam entre si, silenciosamente, um lugarzinho ao meu lado, embaixo de um de meus braços protetores ou em cima de meu peito amplo e de aço, que abrigava um coração que não alterava o ritmo mesmo nas piores situações.

Acordamos tarde, com o sol quente a fazer-nos suar na cama, e elas comentaram muito sobre o susto da madrugada:

- Gente, e ainda existe quem não acredite em alma do outro mundo...Eu, hein? Que susto que eu levei. Eu preferiria descer do carro e ir a pé do que continuar a viagem.

- E eu, então? Quase sujei minha calcinha de tanto susto.

- Eu não pulei pela janela porque estou meio gordinha. Ia ficar entalada.

- Fernando, você foi nosso herói. Manteve a calma, não deixou o carro descontrolar e ainda acalmou a gente depois. Que sangue-frio!! Você não tem medo de nada nesse mundo?

Modesto como sempre, afirmei que felizmente nascera e crescera sem saber muito bem o que era medo. Só o conhecia de ouvir dizer. Claro que eu não contaria nunca que dormia de luz acesa, quando rapazinho, depois de ouvir no rádio as “Histórias da Meia-Noite”.

Descemos, tomamos o café da manhã calmamente e embarcamos em meu carro.

Quando eu ia virar a chave de ignição, a Maria Doida apareceu, sorridente como sempre, esticou a mão para dentro de meu carro e perguntou baixinho, naquele seu jeito de doida mansa:

- Tem um “trocadim”, sô Fernando?

Que sorte que eu tive! Exatamente na hora que Maria Doida, com seu vestido vermelho “cheguei”, e seu eterno sorriso esticado na cara, me pedia um “trocadim”, um motorista de caminhão, sósia do então jovem e belo Francisco Cuoco adentrava o restaurante do posto de gasolina e as três moças olhavam extasiadas para ele, sem perceber nada à sua volta.

Depois de jogar umas moedas na mão de Maria Doida, arranquei feito um doido e mantive estrada afora minha fama de valente.

Agora, tantos anos passados, eu posso confessar: antes de reconhecer minha amiga Maria Doida na estrada os meus cabelos da nuca haviam se eriçado e eu sentira uma tremenda contração no “escapamento”. Quem tem, tem medo...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 09/06/2007
Código do texto: T519431
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