Um carro branco

Há um carro branco estacionado na esquina de casa. Um carro limpo, lindo, de aspecto libertino. Esperando um guia que o faça jus. Não sou de roubar coisas mas tal carro é uma espécie de alma clandestina em terras nada afáveis. Eu também sou uma espécie de alma clandestina em terras nada afáveis. Poderia então dizer que somos almas gêmeas? Provavelmente sim. Estou voltando ao lar após um dia merda de trabalho merda. Lembro de um vídeo que assisti onde ensinam abrir carros com cadarço. Olho pros lados, ninguém por perto (sim, moro num canto curiosamente inóspito). Tiro o tênis, sinto o chulé mais denso que gás metano misturado a chorume. Preciso usar talco, galera. Novamente olho pros lados, nada. Tiro o cadarço e encaixo entre a fenda da porta esquerda. Gol! O assento é confortável mas minhas costas não ajudam. Um emprego em escritório destrói qualquer vertebral. Não é de se espantar que as pessoas cheguem ao fim da vida bem corcundas, tanto física quanto espiritualmente. HAhahahahahahaha.

- Ei, cara. Da logo a partida.

- Quê, tu fala?

- Claro.

- Jamais suspeitei que carros falassem.

- Normal. Vocês são burros mesmo.

- Seu dono sabe?

- Obviamente não.

- Sério?

- Dê logo a partida, amigo! Não temos muito tempo. Daqui a pouco a esposa vai querer jantar no outback.

- Porque quer que eu dirija?

- Tu é diferente. Raro. Quem rouba um carro com cadarço? Gostei.

Piso forte no acelerador, sinto o bicho pairar.

- Tá de sacanagem. Vai dizer que voa também.

- Why not?

Levitando posso ver meu prédio no tamanho de um noz, meu bairro encolhe como uva passa. A cidade em escala de bolacha cream cracker. Mais e mais e mais e mais distante. Varando a ionosfera.

- Escolha uma música. Detesto andar sem música.

- Nando Reis.

- Eu disse música.

- Joy Division.

** I've been waiting for a guide to come and take me by the hand,

Could these sensations make me feel the pleasures of a normal man? **

- Escuta, preciso ir à Lua - diz o carro - Rever uns brothers.

- Tudo bem. Gosto da Lua.

O pouso é ligeiro e simples. Somos recepcionados por seres pequenos e aparentemente simpáticos.

- Ele é terráqueo, carro?

- Sim. Me roubou com cadarço.

- Quer viver conosco, terráqueo?

- Claro! Mas como sobreviver? Não consigo respirar.

- Tu desencarnou assim que adentrou essa atmosfera.

Tchau, leitores. Vou morar com uns lunáticos. O carro branco infelizmente voltará pra Terra.

cristiano rufino
Enviado por cristiano rufino em 06/04/2015
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