RADIX

Marx e J.S.R., desde a vida estudantil, alinham-se ao pensamento progressista. São amigos, lutam pelos mesmos ideais, tornam-se lideranças de respeito.

Contudo, interesses e circunstâncias se amoldam à gravidade do tempo. Submetidos aos prazos da vida, os camaradas se distanciam. Enquanto Marx preserva sua índole, JSR, após entregar ao “establishment” uma lista com o nome dos principais líderes da resistência, é nomeado para um importante cargo na Controladoria da Lei e da Ordem.

A Junta Diretiva do estado de Freeland, conhecido popularmente como Fire and Iron, trata de manter a ordem com “mão pesada”. Vigilância e disciplina se sobressaem na estrutura estatal.

Inúmeros decretos em favor dos bons costumes e da segurança pública são editados em Freeland. O órgão dirigente acumula funções legislativas e jurisdicionais. Nas unidades federadas sob vigilância do comando central, interventores nomeados aplicam a Cartilha em vigor.

Opositores do regime são vigiados de perto. Investigadores embrenham-se nos órgãos responsáveis pela prestação dos serviços públicos e desenvolvem bem sucedidas perseguições aos dissidentes.

A ordem estabelecida é responsável pela supressão dos direitos fundamentais e pela implantação de um abusivo sistema tributário. A pobreza aumenta, o regime é impiedoso. Entre a maioria da população a revolta cresce. Mas algumas pessoas, com receio de serem eliminadas, emprestam apoio à Junta Diretiva.

Fiel às suas convicções, Marx avalia esses tempos e constata o demasiado gasto com a publicidade governamental. A pesquisa científica, a educação, a arte e a cultura carecem de prestígio. Perebas inundam hospitais coletivos. O saneamento é deficiente. Um rol interminável de obras públicas estão sujeitas a onerosos aditivos contratuais.

A recessão em Freeland é companhia permanente do desemprego e da fome. Os estímulos da Junta Diretiva vão para investidores qualificados, destinam-se ao mercado da compra e venda de ativos financeiros.

Marx reflete sobre o paraíso restrito a uns poucos. O desjejum, na ilha da bem-aventurança, é servido com ovos, panquecas, sanduíches, cereais, frutas, doces vários e até mesmo champanhe. Nesse âmbito, Freeland se mostra cheia de inventos. Na mídia, o país é alardeado por cifrões, palacetes, festas, joias, homens alinhados e mulheres esculturais.

Assolado por frustrações, em dificuldade para obter acesso a bens e serviços básicos, Marx é responsável pela arte panfletária. Junto a uns poucos partisans, ele se encaminha à praça pública para dirigir os protestos contra o desgoverno. Por todos os lados, longe da sua comoção, cores e painéis celebram índices de uma economia próspera; exaltam armas nucleares, poderio bélico e riqueza energética. Ao verdadeiro olhar, no entanto, o que se vê é a corrupção, o crime organizado, a pobreza disseminada.

Inarredável aos seus princípios, Marx se vê abordado e empurrado para o interior de um ônibus pertencente à Junta Diretiva. Sem demora, é submetido a breve interrogatório. Em Freeland é comum a abordagem pessoal, a restrição do ir e vir e o freio à liberdade de consciência.

Longe do seu refúgio, Marx se percebe inseguro ao ver o agito da paisagem. Uma metralhadora, nervosamente apontada em sua direção, meio aos solavancos do veículo, o coloca no centro da realidade. Nesses tempos, quando os projéteis saem das armas manuseadas pelos agentes da Junta Diretiva, justificam-se, sem delongas, as mortes por disparos acidentais.

Nas ruas e praças, ante o testemunho impassível dos monumentos históricos, protestos são embargados pela couraça da soldadesca, pelos cães de treino e pelas espessas nuvens de gás.

Finalmente, Marx entende que o sistema abateu suas esperanças. Após ligeira e arriscada manobra, a viatura que o conduz estaciona junto a um posto disciplinar.

Ao descer do ônibus, na companhia de seus pares, Marx ouve a ordem que vem do megafone: - “Levantem as mãos e dirijam-se ao muro pra identificação”. Esse comando o esvazia por inteiro. Trovões do megafone inquietam os céus. Rajadas de metralhadoras perseguem os dissidentes, que se arriscam numa fuga inútil.

Giroflex e sirenes voam pelas ruas. Acomodado em seu gabinete, J.S.R. encaminha aos superiores um relatório sobre as operações em favor da paz social. Em anexo à exposição escrita vão fotografias recentes de alguns membros da resistência, todas com superposição de uma cruz. Num passar de olhos sobre as fotos, J.S.R. vê antigos camaradas, vê o retrato de Marx, número dois da revolta popular.

O intrigante para J.S.R. é que não há dados sobre o principal membro da oposição, representado por um simples contorno em um papel de fundo branco. A inteligência de Freeland não disponibiliza foto, nome e nem o paradeiro do personagem mais importante da resistência. Ao construir indagações, J.S.R., que na atualidade não identifica uma liderança expressiva entre os remanescentes do movimento, sente um calor repentino percorrer o corpo.

A par disso, nas principais fortificações de Freeland, “on the rocks”, ajustando a eternidade, os membros da Junta Diretiva bocejam entediados, enquanto transferem cifras virtuais por entre os confins do mundo.