A Caixinha

- Seu Ademir, o senhor é a única pessoa neste mundo em quem eu confio plenamente. Confio mais no senhor do que em mim mesma, que já não tenho lá muita memória. Vivo me esquecendo das coisas o tempo todo. O que é que eu ia dizendo mesmo? Ah, sim. Eu quero que o senhor guarde pra mim uma caixinha muito, muito importante mesmo. Uma caixinha que tem umas coisas que meu marido deixou pra garantir minha velhice. Minha amiga Mauricéia disse pra eu guardar num cofre de banco. Até parece que sou doida de fazer isso...Vivem assaltando os bancos todos os dias...Posso trazer a caixinha pro senhor guardar, seu Ademir?

Ademir sabia que causaria muito desgosto à velha vizinha caso se negasse a tomar conta de sua preciosa caixinha.

- Traga, dona Antônia. Traga-a. Pode trazer que eu a porei em meu cofre. E quando precisar dela é só me pedir.

- Acho que já lhe disse que ela tem umas coisas pra garantir meu conforto na velhice, seu Ademir. Mas a verdade é que acho que vou morrer antes de ficar velha.

Ademir teve vontade de rir. A velhinha era meio doida mesmo. Confiar mais no modesto cofre de parede de sua casa e achar que a velhice ainda não chegara para ela. “Quando será que ela se considerará velha? Aos cento e quantos anos?”.

Meia hora depois dona Antônia voltou com uma bela caixinha de madeira entalhada nas mãos, carregando-a com certa dificuldade.

- Está aqui, seu Ademir. Essa caixinha é a coisa mais importante que tenho na vida. Ponha no cofre, por favor, mas faça isso na minha frente. Sei que o senhor é um homem decente e que nunca vai mexer no que tem aí dentro.

Ademir abriu o cofre, ajeitou a papelada que havia dentro dele, fez um espaço para a caixinha, que media mais ou menos dois palmos de comprimento por um de largura e outro de profundidade, guardou-a com certa solenidade e fechou a portinha de grosso aço.

- O senhor nem imagina, seu Ademir, o quanto estou feliz e sossegada agora. Ah, eu tinha me esquecido, seu Ademir. Se me acontecer alguma coisa, assim, digamos, que eu morra de repente num acidente, já que a minha saúde é de ferro, eu quero que o senhor ponha essa caixinha no meu caixão. Ela foi presente de meu marido quando a gente se casou e é o objeto mais importante da minha vida. Morro de medo de entrar ladrão lá em casa e “levar ela” embora. Deus que lhe pague, seu Ademir.

- Não há de quê, dona Antônia. Não há de quê. Quer tomar um café comigo?

- Olha que eu vou aceitar...Tem adoçante? Estou fazendo regime pra emagrecer, seu Ademir.

Sentaram-se à farta mesa de café de Ademir e a velhinha mostrou que apetite não lhe faltava. Comeu várias fatias de bolo de milho, dois ou três pães com manteiga, bolachas de vários tipos, e pelo menos três copos de café com leite.

- Então a senhora está fazendo regime, dona Antônia?

- Estou, seu Ademir. Já cortei o açúcar e várias outras coisas que gosto. Mas o meu estômago já está se acostumando. Qualquer coisinha que lambisco ele já fica satisfeito.

- Benza Deus...

- O que o senhor disse?

- Faz bem, dona Antônia. Faz bem em cuidar da saúde.

- Fale a verdade, seu Ademir: estou bem inteirona pra quem está chegando aos noventa, não estou?

- Noventa? Quem diria! Meus parabéns, dona Antônia. Falta muito?

- Amanhã, seu Ademir. Amanhã eu completo os noventa anos.

- Então terá uma festa em casa?

- Festa?, Que festa que nada...Os filhos já se foram pro outro lado. A filha morreu já tem uns dez anos. Netos, não cheguei a ter. Minha sorte foi ter marido vivo até o ano passado. Ele era dez anos mais moço que eu e cuidava de mim com muito amor. Depois que ele se foi eu fiquei sozinha. Se não fosse o senhor, um bom amigo e vizinho, eu não teria ninguém mais neste mundo de Deus. Posso vir aqui toda semana ver minha caixinha, seu Ademir? Não vou incomodar muito?

- Sempre que quiser, dona Antônia. Venha quando lhe der vontade.

Ademir gostava da velhinha. Trinta anos mais velha que ele, parecendo estar perto dos cem, ainda trazia entre suas infinitas rugas alguns traços do que devia ter sido uma grande beleza. Era risonha, faladeira, brincalhona, jamais se queixava de doença alguma e parecia estar sempre a par de todos os assuntos. Acabara acostumando-se às longas visitas da anciã à sua casa e quando, vez ou outra, ela sumia por alguns dias ele sentia sua falta.

- Sumida, dona Antônia. O que houve?

- Estava meio triste, meio macambúzia, e quando fico assim não gosto de incomodar ninguém, seu Ademir. Acho que alegria foi feita pra dividir com os outros, a tristeza pra guardar pra gente. O senhor não acha?

- Mas os amigos são para todas as horas, e com os amigos a gente até esquece as tristezas da vida, dona Antônia.

- E sua aposentadoria, seu Ademir? Como é que andam as coisas?

- Parece que está cada vez mais difícil, minha cara amiga. Está sendo a maior luta pra conseguir reunir toda a papelada que pedem. Acho que ainda vai passar um bocado de tempo até começar a receber minha aposentadoria.

- Graças a Deus pra mim foi tudo fácil. Todo mês recebo meu dinheirinho no dia certo. Não posso me queixar. Meu marido deixou tudo em ordem e ainda recebi um bom seguro de vida dele. O banco me pagou tudo direitinho, direitinho. Eu fiquei até meio riquinha.

Três dias depois da última visita a velhinha foi encontrada morta em sua cadeira de balanço da varanda da casa por uma vizinha.

- Estava com uma carinha tão boa...Parecia que estava dormindo e acordou morta. Deve ter sido o coração.- comentou a empregada.

“Acordou morta...”

Os meses foram passando e as reservas financeiras de Ademir chegaram ao fim. Sem um tostão sequer em casa, nem para um mísero pãozinho, lembrou-se da caixinha de dona Antônia. A caixinha que ele se esquecera totalmente de colocar no caixão, conforme o pedido dela. Abriu o cofre, tirou a caixinha e levou um susto ao ver o que continha: um belíssimo maço de notas grandes de dólares e muitas barrinhas de ouro, de cinqüenta gramas cada.

-Minha nossa!! Não era à toa que ela dizia que era meio riquinha...Com o que tem aqui dá pra se viver bem por um tempão. Ela já se foi mesmo e sempre me dizia que não tinha ninguém no mundo. Acho até que posso me considerar seu herdeiro e tomar posse da caixinha. Creio que isso aqui é capital suficiente para abrir um comérciozinho aqui em casa e parar de viver só esperando a maldita aposentadoria, que parece que não tem mesmo jeito de sair.

Ademir reformou a casa, que pedia um trato urgente, ampliou e reformou a garagem, encomendou as instalações comerciais necessárias, e logo se viu prestes a inaugurar ali uma boa papelaria de pequeno porte .

- Maravilha das maravilhas! Trabalhar sem sair de casa, sem patrão e sem aluguel a pagar! Isso é o sonho de muita gente. E graças à dona Antônia, estou realizando meu sonho. Agora é investir o resto da “herança” na compra de mercadorias e “botar pra quebrar”.

Na noite do mesmo dia em que investiu o último dinheiro de dona Antônia, depois de convertê-lo em nossa moeda, dona Antônia surgiu em seu quarto durante a madrugada.

- Seu Ademir, quero a minha caixinha, seu Ademir. A caixinha, seu Ademir, tá lembrado? O senhor se esqueceu de colocar a caixinha no meu caixão, seu Ademir.

Ademir pulou da cama assustado, suando frio, com a certeza de que aquilo não fora apenas um sonho. Dona Antônia estivera mesmo em seu quarto e puxara suave, mas firmemente, seu dedão do pé. Ainda podia sentir nele, no pé esquerdo, o puxão que ela lhe dera.

Voltou a dormir e dona Antônia voltou a chamá-lo. Cada vez mais brava, mais impaciente, mais nervosa, e cobrando a caixinha com a maior urgência.

Todas as noites dona Antônia cobrava a caixinha e Ademir não conseguia dormir mais que alguns minutos seguidos.

Desesperado, achando que enlouqueceria com tanta cobrança vindo do além, Ademir vendeu às pressas, e barato, um belo sítio nos arredores da cidade, que pagara com muito sacrifício, e que queria deixar para os filhos, passou nos cobres, por poucos cobres para vender rapidamente, seu valioso carro raro, antigo e perfeito, sonho de muitos colecionadores, fez um empréstimo no banco, o que era o maior pavor de sua vida, e conseguiu encher de novo a caixinha de dona Antônia. Estavam ali todos os dólares e todas as barrinhas de ouro que a velhinha lhe confiara.

- Pronto, dona Antônia. Pode vir buscar sua bendita caixinha. Vai ficar em cima da cama à sua espera.

Naquela madrugada dona Antônia voltou, viu a caixinha e sorriu abertamente.

- Muito obrigada, seu Ademir. Deus que lhe pague. Eu sabia que podia confiar no senhor.

O vulto etéreo e transparente de dona Antônia abaixou-se na cama, examinou a caixinha atentamente, depois sorriu para Ademir enquanto lhe dizia:

- Eu só quero que o senhor ponha a caixinha no meu caixão, seu Ademir. O resto não tem importância alguma. O que tem aí dentro não vale nada onde eu estou agora. Pode ficar para o senhor e que Deus lhe pague, seu Ademir.

Com aquele dinheiro Ademir só conseguiu quitar a dívida no banco e ficar com uma boa reserva. O sítio e o carro? Sem chance, que os compradores não eram bestas.

Seu Ademir voltou a dormir sossegado, mas revoltado por um bom tempo:

- Diabos! Nem depois de mortas as mulheres sabem dizer o que querem...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 10/06/2007
Código do texto: T520848
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