Apetite Infernal

- Impressionante...
- Impressionante o quê, meu bem?
- É impressionante o quanto você come. Nunca imaginei que uma mulher desse tamanhinho conseguisse colocar tanta comida pra dentro do estômago.
- Vai começar a implicar? Não adianta nada. Não vai conseguir me tirar o apetite.
- Nada consegue. Acho que se sua mãe morrer de repente, na hora do almoço, você vai correr pro lado dela com o prato na mão e a boca cheia.
- Que coisa desagradável a gente almoçar com alguém implicando...
- Mais desagradável é ter que sustentar uma comilona da tua marca, minha querida. Perco o apetite só de me lembrar o que tenho que gastar no supermercado. Não era à toa que seu pai estava doido pra você se casar logo.
- Você sabe muito bem que ele contra nosso casamento.
- Contra coisa nenhuma. Ele estava era querendo valorizar a “mercadoria”. Não via a hora de te ver pelas costas. Pelas costas, sentada, e comendo às custas de outro.
- Temos tão pouco tempo de casados e você já não gosta mais de mim...
- Até que eu lhe tenho uma certa simpatia. Não vou negar. Estou pensando até em te arranjar um emprego que deve ser o seu sonho.
- Que emprego é esse?
- Um amigo meu tem um restaurante lá no centro. Estou pensando em te oferecer pra trabalhar lá.
- De cozinheira?
- Não. De demonstradora. Ele vai te colocar dentro de uma vitrine, na porta do restaurante, comendo o dia todo. Com a boca boa com que você come qualquer coisa, vai atrair a maior freguesia.
Ela parou de comer por um tempinho e ficou me encarando com aquela carinha lindíssima. Aquela carinha que me levara ao casamento bem antes do que eu planejava.
- Quer parar de implicar comigo, amor?
- Falando sério, meu bem. Sério mesmo. Você não acha que exagera muito na comida? Por enquanto você é novinha, bonita, está com o corpo todo em ordem, mas uma hora isso vai mudar. E vai ser meio de repente. Escute o que estou te dizendo. Aí não haverá dieta que dê jeito. Nem dieta nem ginástica.
Décadas depois surgiria a expressão perfeita para ela: boca nervosa.

Brincando, implicando com ela, no fundo eu falava sério. Preocupava-me o apetite excessivo daquela moça linda com quem me casara. Sem qualquer exagero, e hoje em dia sem qualquer saudade, ela era linda dos pés à cabeça. Uma das poucas mulheres que conheci em minha vida que não tinha uma única marca em toda a extensão da pele. Nada de rugas, celulites, pelancas, cicatrizes, pelos grossos ou mesmo finos, além de rosto, pés e mãos incrivelmente bonitos. Uma bonequinha que encantava a todos com seu sorriso radiante e rostinho de criança aos vinte e dois anos. Eu babava de admiração e era louco por ela nos primeiros anos de convivência. Ela sabia disso e não se enfezava seriamente com minha chatice de marido preocupado.

Depois do primeiro filho o corpo dela começou a mudar. Claro que eu sabia que isso aconteceria. O que eu não sabia é que começaria a mudar tão depressa. E para pior, muito pior.
Um dia, na praia, vi-a sentada na toalha e levei um susto. Pareceu-me que de um dia para o outro ela havia criado uma enorme faixa de gordura em volta do estômago e aquela coisa disforme caía para os lados, como uma bóia mal presa. Ela percebeu minha cara de desagrado e ficou brava. Bravíssima. E agressiva.
- Está olhando o quê? Você não sabe que a mulher engorda depois de ter filhos?
- Falou bem. Filhos, fi-lhos. Com um filho só não precisa engordar tanto. Um pouco de cuidado faz bem e segura o marido. Isso é, caso ainda lhe interesse.
- A culpa é sua, que não me paga uma academia.
- Deixe de conversa fiada. Se você entrar em uma academia a única coisa que vai fazer é freqüentar a lanchonete. Cuidar da casa também é exercício. E dos bons. Se não quer trabalhar fora, que pelo menos trabalhe dentro de casa.
- Agora eu sou, além de gorda, preguiçosa. E o que mais?
- Chata. Chatíssima. Uma das pessoas mais chatas que conheço.
Ela se levantou, recolheu as tralhas de praia e voltou para a casa de meus pais pisando duro e levando nosso filho nos braços.
Pedi mais uma cerveja na barraca e fiquei olhando as gostosinhas que passavam enquanto pensava em meu casamento.
- “Bela merda que fiz com esse casamento. E não é só com relação ao corpo dela não. É tudo. Essa xarope não tem senso de humor, não tem conversa inteligente, não sabe falar nada além de fuxicos de tevê, não lê um livro bom, não cuida direito da casa, enche o saco rendendo assuntos bestas, e ainda se acha gostosa com esse corpo de filhote de hipopótamo. Em menos de dois anos de casados já perdeu a vaidade. Vá se danar...”

Eu queria, à aquela altura da vida, jovem ainda, ser um marido fiel, fidelíssimo, um desses caras que chegam em casa sentindo o maior prazer do mundo, doido pra agradar sempre a esposa e o filho, mas, sinceramente, não tinha jeito. Quem é que agüenta, depois de um dia inteiro de trabalho, chegar em casa e ver que está tudo por fazer, que a bagunça é a regra geral, que o neném está fedido, que a comida não está pronta, que a sujeira do cachorro continua sem ser retirada no quintal, que a mulher ainda não teve tempo de tomar banho e ficar bonita para esperar o marido?
Ainda se fosse uma casa grande, uma mansão enorme e sem empregados, vá lá. Mas uma modesta, porém jeitosa, casa de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e quintal, qualquer mulher, que não trabalhasse fora, com um pouco de boa vontade manteria nos trinques. Menos a minha.
Não que ela fosse suja, sem higiene ou cuidados pessoais. Até que andava, digamos, jeitosinha. Mas a casa...Deus que me livre...Abrir as portas de nossos guarda-roupas era sempre uma visita ao caos total. Dava ódio. Dava a impressão de que o guarda-roupas fora resgatado de um furacão, maremoto, terremoto ou coisa parecida. Ou chacoalhado por mãos gigantescas.
A coisa melhorou um pouco a partir do dia em que joguei todas as roupas da casa, todas, sem exceção alguma, pela janela do quarto e deixei um recado pendurado na porta do móvel: “Todas as vezes que essa merda de armário estiver bagunçado as roupas serão jogadas pela janela”.
Funcionou por algum tempo.

Um dia, em uma festa na família dela, sentei-me com um copo de cerveja em uma das mãos e fiquei ouvindo-a conversar com uma velha tia lá dela. Alguns minutos depois a velha cabeceava de sono, como que narcotizada pela lengalenga que ouvia. Minha (ex) esposa contava à pobre velha, com todos os detalhes possíveis, lances “emocionantes” da vida de sua tartaruga quase centenária e “espertíssima”. E, pior, no mesmo ritmo “alucinante” em que o velho animal vivia.
Lembro-me como se fosse hoje do pensamento que me ocorreu naquele momento inesquecível:
- P. q. p!! Será possível que exista chatice maior? – e caí fora antes que caísse no sono, imitando a pobre vítima de cabelos brancos ao lado dela.

É engraçado como a gente namora por um bom tempo, noiva por outro tanto até ajuntar dinheiro para montar a casa, e quando se casa é que começa realmente a conhecer a pessoa que, segundo os ritos do matrimônio, teremos que agüentar por toda a vida.
“Até que a morte nos separe”....Pois sim...Deviam acrescentar à falação do padre: “Até que a chatice os separe.”
O mais engraçado é que nosso casamento superou tal “crise dos sete anos”.
A que ele não superou foi a crise dos sete anos e dois meses. “Cabô”
de vez.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 10/06/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T520897
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