Chantagem Involuntária

- Fernando, eu quero que você me dê uma sugestão para o nome de minha filhinha. Faltam vinte dias pra ela nascer e ainda não escolhi um nome pra ela, você acredita?
- Se ela nascer parecida contigo, eu sugiro Gostosinha Júnior.
- Fala sério, pô...Eu quero um nome que seja uma coisa assim bem zen, uma coisa que lembre coisas indianas, coisas que lembrem meditação e sabedoria, um nome suave, bem pensado. Um nome que ela cresça gostando de ter.
- Indiano? Yoga? Zen?...Que tal Shovenashana Bundapratraz?
- Bobo...Nem sei porquê perco tempo conversando com você...
- Atração fatal. Você me odeia, mas se sente mal longe de mim. Freud até tentou explicar. Tenho outra sugestão: Yasmim.
- Yasmim...Yasmim...até que é bonito, mas não é tão incomum como eu quero.
- Pode ser, pra ficar mais bonito, Yasmim Tirosa. Você inventa que o pai é espanhol, italiano, sei lá. Falar nisso, você já descobriu quem é o pai?
- Até agora não. Eu estava que nem aquela cachorrinha da piada: com a cabeça na lata do lixo. Mas eu quase posso jurar que seja meu marido.
- Pode até ser. Faz tempo que ele me parece meio esgotadão. Deve ser o esforço que fez pra te dar essa barriguinha.
- Você não vai mesmo com a cara dele, não é?
- Nunca fui. Aquele sujeitinho me embrulha o estômago. Mas não é de graça não. Você já reparou a cara com que ele encara a humanidade em geral? Parece que tem nojo de todo mundo. Eu nunca vou entender você. Uma gostosura de pessoa, física e espiritualmente falando, gozadora, brincalhona, espirituosa e simpática como você, casada com aquela coisa com cara de mordomo inglês nauseado. Tô torcendo pra tua filhinha não sair com a cara do pai.
- Vai sair lindinha como eu, você vai ver.
- Lindinha e modesta como a mãe. Aproveita que o xaropão não veio contigo e entra aqui atrás do balcão. Quero dar uns beijos nessa barriguinha.
Ela riu, fez um pouco de bico doce, mas acabou indo para o meu lado, atrás do balcão, onde pude acariciá-la com respeito, suavidade e amizade, e ainda dar até mesmo uns beijos naquela barrigona que parecia uma enorme melancia a ponto de explodir. Nosso caso terminara algum tempo antes de ela se casar, mas continuávamos muito bons amigos e de vez em quando tínhamos uma recaída.

Minha memória para certas coisas, tais como números, fisionomias, livros e alguns fatos, é mais do que fotográfica. Há vezes em que levo meses para me lembrar de uma insignificância acontecida muito tempo antes, mas de repente a coisa me vêm tão claramente que parece ter acontecido na véspera.
Quando, menos de um mês depois, minha querida amiga deu à luz a sua menina, fui ao hospital visitá-la e vi de longe seu repulsivo marido. E foi naquele momento que me “caiu a ficha”. Putzgrilla!! Eu sabia que conhecia aquela cara cheia de barba, careca, com nariz comprido e físico de antena. Eu tinha, desde a primeira vez que o vi ao lado dela, que já vira aquela cara antipática antes, mas não havia meio de me lembrar onde e quando. E naquele momento, ao vê-lo olhando para a filha através do vidro do berçário, minha memória funcionou e foi como um flash que mostrava quando e onde o vira anteriormente: eu estava voltando de Belo Horizonte numa certa madrugada, e no centro de São Paulo tive que mudar o caminho de sempre por causa de obras na avenida São João. O trânsito fora desviado para os lados da avenida Ipiranga e acabei passando pelo largo do Arouche. Foi ali que eu vi aquele cara. Eu o vi abraçado a outro parecido com ele e trocando beijos na boca. Beijos que me enojaram, que me fizeram virar a cara e que me embrulharam o estômago. Aos vinte e poucos anos eu nunca tinha visto dois barbados se beijando na boca e achei a cena chocante. Quando ia arrancando com meu carro, os dois se soltaram, olharam para mim e sorriram debochadamente. Foi naquele momento que meu cérebro gravou a fisionomia dele. Do que, dos dois, era o mais esquisito no jeito de ser: muito careca, muito barbudo, com os óculos muito grossos, e um ar de arrogância total.
Aproximei-me do berçário com a intenção de, deixando de lado minha antipatia, cumprimentá-lo pelo nascimento da criança, mas o cara ignorou minha mão e perguntou-me com rispidez:
- O que é que você veio fazer aqui?
- Vim visitar sua esposa e ver sua filha. Porquê?
- Você e minha mulher estão sempre perto um do outro. Isso já está mesmo me enchendo o saco.
- É mesmo? Que coisa estranha...Vai ver ela sente é falta da proximidade de um homem.
- O que é que você quer dizer com isso?
- Exatamente o que você entendeu. Ela gosta de minha companhia porquê não tem macho em casa. Fêmea gosta de macho.
- Pelo jeito você quer mesmo é sair na porrada comigo.
- Não façamos cerimônia. Quando e onde você quiser.
Antes que ele voltasse a abrir a boca, completei:
- Desde que, é claro, não seja no largo do Arouche às duas da manhã. Ali não é ambiente pra mim. Tem muita veadagem.
Dois dias depois minha amiga saiu do hospital com a filhinha nos braços e fez o marido parar o carro em frente ao meu restaurante para que ela pudesse me mostrar a criança.
- É ou não é a minha cara? Fala a verdade?
- O importante é ter saúde...
- Seu chato! Ela parece ou não parece comigo?
- Olhando bem, reparando nos detalhes, ela tem mesmo uma coisa sua...
- O que? O nariz? A boca? Os olhos?
- Não. Ela me lembra um dos teus lindos joelhinhos. Sem tirar nem pôr.
Xingando-me graciosamente, ela voltou para o carro e eu a acompanhei.
Ao chegar próximo ao carro o marido dela, agora simpático e amável, cumprimentou-me com um jovial aperto de mão e um largo sorriso.
Vai ver achou que precisaria ser simpático comigo para que eu mantivesse o silêncio. Filho de uma...pensou que eu era algum chantagista. Ou fofoqueiro.
Por mim, o tempo que se encarregasse de mostrar a ele e à esposa que não haviam sido feitos um para o outro. Ou até que haviam, sei lá. Eu só havia mencionado o largo do Arouche pra poder ver a filha dele e dar um beijo em minha amiga sem que ele me enchesse o saco.
Ele que entrasse ou saísse do armário quando quisesse.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 10/06/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T520976
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