Filha de Peixe...

Loirinha, miúda, bem feitinha de corpo, de franjinha e cabelinho que lhe emoldurava o rosto, eu a considerava um anjinho que surgiu em minha vida. Contava, ansioso, os minutos que faltavam para que ela surgisse no ponto de ônibus a cada manhã e eu entrasse nele junto com ela. Havia dias em que eu achava que teria coragem de abordá-la, mas a valentia passava logo. Meu sentimento por ela era tão intenso a ponto de tornar-me tímido, medroso mesmo de levar um “chega pra lá”, por mais delicado e educado que fosse.

Acontece que a insônia em mim tem um efeito que muitas vezes me tem ajudado na vida: torna-me decidido e audacioso no dia seguinte. Nunca soube o porquê disso, mas sempre foi o que me aconteceu.

E em uma dessas manhãs em que eu sonhava voltar para a cama, ela chegou mais cedo ao ponto de ônibus e eu sorri para ela como se a conhecesse. Ela retribuiu o sorriso à altura e eu “meti os peitos”:

- Moça, se eu te disser que não dormi essa noite pensando em você, você acreditaria em mim?

- É mesmo? Você jura?

- Juro. Porquê?

- A maior coincidência...Eu também pensei muito em você essa noite. Custei muito a dormir.

Meu coração parou de bater por alguns instantes e começou a badalar.

- E o que é que você pensou sobre mim?

- Pensei em quando você se decidiria a conversar comigo.

- Decidido a conversar com você eu estou desde o minuto em que a vi pela primeira vez. Mas cadê coragem de abordar um anjinho tão lindo quanto você? Deve estar cheia de pretendentes apaixonados.

- Que nada...Até hoje, a essa altura da vida, só tive um namorado.

- A essa altura da vida...Dá até a impressão de que já passou dos quinze anos...

- Dezessete, viu? Quase dezoito. Faltam só dois meses. E você, quantos anos tem?

- Vinte, quase vinte e um. Faltam só onze meses e vinte e cinco dias.

Papo vai, papo vem, papo volta, papo engata, desengata, faz meia volta, e acabamos marcando um encontro no portão da casa dela. Naquela noite às oito.

Às sete e vinte da noite eu estava na esquina da casa dela contando os minutos que faltavam para as oito horas. Minutos desgraçados que deviam estar vindo se arrastando de barriga. Não chegavam nunca as benditas oito horas.

Às oito em ponto, pontíssimo, ela chegou ao portão e o abriu. Eu cheguei junto com a abertura do portão.

- Pontual...

- Pontuala...feminino de pontual.

- Faz tempo que você chegou?

- Que nada. Acabei de descer do ônibus.

- Engraçado...Tive a impressão de ter visto você na esquina desde as sete e vinte.

- Um grande amor pode começar com uma grande mentira. O dia custou a passar e eu não via a hora de te ver de novo. Acabei chegando muito cedo.

- Gostei disso. Ficaria triste se você se atrasasse.

Os primeiros dias de namoro foram uma delícia. Ela era agradável, inteligente, pontual, atenciosa, meiga e carinhosa. Tinha, enfim, todas as qualidades que a gente, naquele tempo, procurava em uma namorada. Hoje em dia creio que às qualidades citadas, procura-se também outras mais objetivas. Ou subjetivas, sei lá..

Pena que ela tivesse um pai.

Mas não um pai qualquer. Ela possuía um pai único. Um tipo inesquecível. Tão inesquecível que décadas depois ainda sinto arrepios pelo corpo quando me lembro dele. Arrepios de asco, ojeriza, antipatia extrema e, para mim, plenamente justificada. Nunca mais, jamais, em tempo algum, com a graça de Deus, encontrei alguém tão absurdamente chato quanto o pai daquela minha namorada com carinha de anjo. Chamá-lo de intolerável era um elogio em se tratando dele.

Na primeira vez em que meu viu o homem veio com a mão direita estendida desde a esquina, um tanto quanto distante, segurou a minha mão e balançou-a algumas dezenas de vezes enquanto me perguntava com voz de baixo profundo:

- Como vai, meu caro jovem? Tudo bem com você? E com seus pais? Seus irmãos, como estão? Todos estudando? Sua mamãezinha, que Deus a proteja, como está?

Com a voz tremente por estar saindo de um corpo balançado, eu ia respondendo como podia e, na gozação, comecei a dar notícias até de minha bisavó:

- Todos bem...graças a Deus...meus pais...meus...irmão...minha avó é que não anda muito bem...minha bisavó já morreu....meu bisavô era médico...já morreu tam...bém.

Achei que aquilo era o máximo da maluquice do sujeito. Ledo engano. Ele apenas queria causar-me uma boa primeira impressão.

Um bom tempo depois, quando meu braço parecia preste a sair do ombro, ele me soltou e entrou em casa.

A filha me olhava sorridente e feliz da vida.

- Papai gostou muito de você. Ele é uma simpatia; não é mesmo?

- Ô, se é...Simpatícissimo. Ele é assim com todo mundo?

- Não. Só quando gosta mesmo de uma pessoa. Quando gosta de verdade.

O diabo do homem havia gostado de mim. Tremendo azar meu. Mal eu chegava ao portão e ele gritava para a filha que me levasse para dentro da casa.

E tome assunto chato.

Um dia o desgraçado começou a contar-me como a avó dele fazia geléia de mocotó. Gente, juro por Deus, o homem fez todos os oito mil gestos com o braço em torno de uma gamela imaginária até que a geléia imaginária ficasse pronta, e repetia a cada volta de braço:

- E mexe...e mexe...e mexe...e mexe...e mexe....e mexe...e mexe...mexe....e mexe..e mexe...e mexe...e mexe...e mexe....e mexe....e mexe....e mexe...e mexe..

Isso, essa tortura verbal, durou um tempão imenso. Uma coisa absurda. E eu ali parado, olhando para a cara dele feito uma besta prestando atenção em outra.

Mas o pior de tudo era o português que ele fazia questão de empregar:

- Creio que amanhã, caso não haja nenhum óbice, farei um aporte financeiro para o meu filho. Qualquer coisa por volta de dez mil cruzeiros.

A qualquer pergunta que alguém da casa lhe fizesse, ele respondia com aquele jeito de Conselheiro Acácio mal acabado:

- Veja, meu caro filho, que sua pergunta, no atual contexto, não deixa de ser um tanto quanto capciosa. Entretanto, procurarei respondê-la com o que me for possível de objetividade e clareza. Vejamos....

E aí o diabo do sujeito falava, falava, falava, falava, e olhava para mim a cada alguns segundos como que esperando minha aprovação.

Resultado: eu não estava namorando a filha. Eu estava servindo de platéia para o pai.

- Papai é um amor de pessoa, não é, meu bem?

- Ô...

- Tem uma cultura imensa. Quem vê o jeito simples dele nem imagina...Vive lendo, consultando obras de pesquisa. Curioso feito ele só.

- O livro de cabeceira dele deve ser um dicionário; não é?

- Como é que você sabe?

- Muito culto ele.

Eu agüentava horas com o sujeito em troca de alguns minutos em paz com a filha dele no portão. Alguns minutos depois de minha chegada e alguns minutos antes de ir embora. Três horas de chatice em troca de quinze, vinte minutos, se tanto, de namoro.

Mas para mim tudo tem limite nessa vida. E o camarada atingiu meu limite máximo de paciência no dia em que se sentou solenemente à minha frente e com cara de discurso me disse, mais pausadamente, mais chatamente do que nunca:

- Quero que você saiba, meu prezadíssimo jovem, que não sou um pai como os outros. Não. Não. Não. Não mesmo. De forma alguma. Distingo-me em meu papel de pai por considerá-lo uma missão eterna que me foi confiada pelo bom Deus, nosso Pai e Criador. Quando meus filhos estiverem casados, já com seus filhos e respectivos cônjuges, eu continuarei a ser sempre o papai deles. Estarei sempre presente para orientar, esclarecer, guiar com a minha experiência de homem vivido, dirimir dúvidas, apaziguar ânimos, resolver querelas, auxiliar nas tomadas de decisões e...

- E mais o quê? O que mais o senhor vai fazer como “papai” deles? Deitar junto na cama do casal e ensinar como trepar? Não vai deixar seus filhos e filhas viverem as próprias vidas? Vai se intrometer onde não tem direito de fazer? O senhor está é brincando...Já é duro agüentá-lo enquanto namoro sua filha; vê lá se vou tolerá-lo depois de casado. Sai dessa, meu caro senhor. Se o ônus para casar com sua filha é ter que aturá-lo, estou me despedindo agora mesmo. Havendo ou não havendo “óbices”, “percalços” ou “embarras”, estou sumindo da vida de vocês agora mesmo.

Levantei-me do sofá, furioso, e dirigi-me à porta com a namorada pendurada em meu braço.

- Espere, meu querido. Não faça isso. Não vá embora desse jeito. Não foi bem isso que papai quis dizer...

Continuei andando com ela pendurada em meu braço, como uma bolsa pesada, até o portão:

- Foi sim. Foi isso mesmo que ele quis dizer. Esse velho chato vai se meter na vida dos filhos até morrer. E gente chata que nem seu pai vive muito. Vive mais de duzentos anos uma praga dessas. Vive mais que tartaruga.

- Não fale assim de meu pai. Faça o favor...

- Chato, chatíssimo, intragável, intolerável, exibido. Fala pelos cotovelos, não dá sossego, não deixa a gente namorar em paz e, ainda por cima, é cheio de frescuras. Vê lá se um macho diz “vou ser sempre o papai deles”? Que vá pro inferno o seu “papai”. E se não estiver de acordo comigo, vá você também.

A partir daquele momento eu não queria mais nada com ela, não sentia mais nada por ela, não a reconhecia mais como a mocinha que amei em silêncio por um bom tempo. Eu a via apenas como a filha do Chato-de-Galochas.

- Então, meu bem, nosso namoro não tem mais nenhuma chance?

- Tem, meu amor. Mate esse velho maluco com uma facada no peito, e eu me casarei com você no dia seguinte.

Trinta anos depois eu a reencontrei em uma de minhas muitas idas a Belo Horizonte e ela me reconheceu:

- Ah, você...Que bom revê-lo, apesar dos pesares...Você foi um namorado que deixou marcas indeléveis em meu pobre e confrangido coração..

Quem herda não furta, diz o velho ditado. Se nossa conversa durasse mais um pouco ela seria bem capaz de me dizer que “se não houvesse nenhum óbice, poderíamos voltar a dialogar em outra ocasião mais propícia, mesmo que apenas por meio telefônico...”. E daí por diante. Arghhhhhhhhhh. Caí fora correndo.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 10/06/2007
Código do texto: T520986
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