Um Espetáculo "De Grátis"

A mulher, uma senhora entre seus cinqüenta e sessenta anos, gritava pra todo mundo ouvir, na movimentadíssima rua Sete de Abril, no centro de São Paulo, com um senhor aparentemente bem mais velho do que ela. O pobre coitado, com o rosto vermelho como um pimentão, esforçava-se para responder e não conseguia. A mulher não deixava, não lhe dava chance alguma:

- Vagabundo, safado, ordinário de uma figa! Nem ao menos os juros você me pagou, seu estelionatário sem vergonha! Quando precisou, foi todo humilde lá em casa, conseguiu o dinheiro, e agora vive fugindo de mim, seu velho sem-vergonha nenhuma na cara!

Dizem que São Paulo é a cidade que não pode parar. Mas muitos paulistanos podem, param, e aglomeram para ver o que é que há em qualquer tumulto, por menor que seja (experimente parar no viaduto do Chá, ficar olhando lá pra baixo com atenção, e logo verá um monte de gente fazendo a mesma coisa. Eu já experimentei e ri muito), e logo um grupinho de office-boys, jovens, portanto sempre prontos para bagunçar e alegrar o ambiente, gritava em coro:

- Paga! Paga! Paga!, Paga!

Outras pessoas riam, algumas aplaudiam, felizes por participar de um deprimente espetáculo gratuito, e sem a menor piedade da vítima da humilhação impingida pela aproveitadora do aperto financeiro alheio.

A velha, entusiasmada com a platéia, continuou sua ladainha aos berros:

- Fiz a dez por cento ao mês pra você, só dez por cento, seu ordinário sem moral, de tanto que você chorou miséria. Agora dá uma de malandro e foge de mim, seu velho safado, ordinário, picareta, vagabundo...

Quando percebi que a mulher já falara demais, que já ultrapassara todos os limites da ofensa, dei alguns berros, consegui a atenção do povão reunido em volta dela, e comecei a discursar de maneira que até a agiota calou-se ficou me olhando, talvez crente que teria meu apoio:

- Senhoras e senhores, todos aqui são testemunhas de que esta agiota safada e confessa está humilhando este senhor em plena via pública. Está cometendo e ao mesmo tempo confessando seu crime: ela não tem direito legal de emprestar dinheiro. Não tem o direito de humilhar ninguém ao fazer uma cobrança dessa maneira humilhante. E muito menos de ofender a um senhor de idade, por mais dinheiro que este lhe deva. Tenho certeza de que, logo que a polícia chegar, muitos de vocês serão testemunhas do que está acontecendo aqui...

A multidão começou a dispersar-se às pressas. Falou-se em testemunhar? Ninguém viu nem ouviu nada...Não estava nem ali quando a coisa aconteceu...

- Vocês que estão se mandando do local do crime, pelo menos digam a um policial para vir até aqui, por favor. Isso não vai matar nem comprometer ninguém, pô!

A agiota, sem saber como agir, tentou ir-se também, e eu a avisei discretamente:

- Se tentar sair daqui, minha tia, vou lhe passar uma rasteira. Agora você vai ter que agüentar as conseqüências do que fez em público. Pode ficar bem quietinha aqui, madame.

- Mas ele me deve e não paga. É safado mesmo.

- Safado é quem pratica agiotagem, madame. Gente vagabunda. Gente que ganha na moleza sendo gigolô de dinheiro, velhinha. A senhora vai ficar quietinha aqui e esperar a polícia chegar.

- Moço, pelo amor de Deus! Ele é quem me deve, e eu ainda tenho que falar com a polícia?

- Quem disse que a senhora vai só falar com a polícia? A senhora confessou que emprestou a ele a dez por cento ao mês. Maior absurdo. Até banco, que pratica agiotagem legalizada, cobra hoje em dia três a quatro por cento ao mês. (Bons tempos aqueles da “carestia”...)

- Mas ele tem nome sujo. Não conseguiria nada nos bancos e eu...

- E mesmo assim a senhora emprestou dinheiro a ele? Além de agiota é burra. A polícia já deve estar chegando.

- Quero ver o senhor provar que eu sou agiota. Só quero ver.

- Será fácil. Eles abrirão a sua bolsa, encontrarão os documentos que o coitado do homem assinou, e isso será prova mais do que suficiente pra senhora ir pra cadeia.

- Não seja por isso...- unindo a ação à palavra a velha agiota abriu a bolsa, pegou de lá alguns papéis e os picotou antes de jogar no chão.

- Pronto. Agora não existe mais prova alguma. Posso ir embora?

- De jeito nenhum. Pelo menos enquanto o senhor ali não verificar se os papéis são os dele mesmo. Assinados por ele.

O velho homem abaixou-se, pegou os papéis, examinou o que pôde e confirmou que eram as promissórias de sua responsabilidade.

- Posso ir agora, moço?- perguntou-me a agiota, pressurosa.

- Pode, madame. Mas tem uma coisa...

- Que coisa?

- Quero seu endereço, senhora.

- Pra mandar a polícia lá?

- Não senhora. Quero ir lá buscar um dinheirinho a um por cento ao mês.

A mulher levou a brincadeira a sério e aprontou-se para começar a gritar quando avisei a ela, falando baixinho:

- Dona, eu não sou o velho frouxo ali não. Comigo o buraco é mais embaixo. Se gritar comigo tá perdida.

De vez em quando havia vantagem em trabalhar de terno e gravata. Nós, vendedores da Larousse, ficávamos com jeitão de advogado. E como muita gente pensa que advogado é “ôtoridade”...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 10/06/2007
Código do texto: T521088
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