História de um comunista

Ela era só mais uma mulher. O ano era 46. Brasil ia indo. A Guerra acabara, O Estado Novo do Getúlio também e uma torta democracia se ensaiava no país. Eu era um estudante apenas. Aliás, um estudante muito pobre. Morava em um cortiço, ao lado daquela mulher.

Ela era só mais uma na multidão de pobres desgraçados. E tinha, obviamente, uma vida desgraçada. Se casou há alguns anos, engravidou e o marido sumiu. Então, ela criou a filha, mais uma que teria uma história desgraçada.

Eu, como todo estudante, tinha acessos de genialidade e buscava alimentá-la. Lia... e lia muito... e lia livros interessantes: clássicos como Dostoyevisk, Lênin, Marx, Victor Hugo, e outros mais novos como Jorge Amado e Graciliano Ramos. (Acho que isso explica um pouco o título, não?)

Entretanto, como todo jovem, tinha também acessos de... de... burrice, intolerância, inexperiência. Sei lá. Eu me achava superior, O Todo Poderoso. Arrotava citações de Lênin e dizia que o povo era burro, que tinham o poder nas mãos, mas não sabiam usar.

Quando eu gritava essas asneiras a mulher balançava a cabeça negativamente e saía para trabalhar. Sempre me olhava com reprovação. Aquele olhar me irritava. Por isso, no outro dia eu lia mais alto um trecho bem maior. O olhar dela sempre reprovador.

Um dia, bebi além da conta. Li a primeira página do “manifesto” e recebi o mesmo olhar reprovador. A bebida misturada com a raiva me fez gritar o livro inteiro. Quando terminei a ultima linha ouvi batidas na porta.

- Agora chega. Minha filha quer dormir.

Eu estava bêbado e, por isso, respondi:

- Ora, você é uma estúpida. Não entende o comunismo.

A mulher me deu outro olhar reprovador.

-Venha comigo.

Ela me levou até o quarto, colocando o dedo indicador nos lábios, pedindo silêncio. Abriu um velho baú e retirou de lá vários livros, alguns raríssimos. Eu pegava todos e os folheava emocionado. “Que Fazer”, “O Capital”, “Do socialismo utópico ao científico”. O álcool no meu cérebro ainda me obrigou a dizer mais uma asneira.

- Hum, deveria lê-los e aprender alguma coisa.

Ela me empurrou para fora, fechou a porta do apartamento e gritou:

-Eu não sei ler, seu estudante de merda! Sempre quis, mas nunca tive chance. Meu marido, dono desses livros, iria me ensinar mas foi morto pela polícia do Getúlio. O povo não é cego e burro, garoto. Só está acorrentado.

Eu fiquei sem ação.

- Então você me olhava daquele jeito...

- Por dois motivos. Primeiro porque sabia que você nunca tinha entendido o que estava lendo...

- Segundo, porque sabia que você sempre iria se irritar e ler mais no outro dia.

E sorri e murmurei um obrigado.

- Obrigado?

- É. Por ter me dito tudo isso.

No outro dia, levei uma estudante de pedagogia para ensinar a ler aos que assim desejassem. Continuei lendo trechos dos meus livros, agora com uma platéia bem mais interessada.

Guardo bem a data desse acontecimento. 22 de Abril de 1946. Foi nesse dia que entendi que “A Filosofia não veio para explicar o mundo, mas para mudá-lo”. Foi nesse dia que virei comunista.