781-A MORADA DE SATANÁS - Pastor x Dona de Cabaré

Aquimar é uma pequena cidade litorânea, de poucos habitantes. A maioria constituída por pescadores, havendo também os que coletam cocos verdes para vendê-los ao caminhão do Chico Treco, que passa comprando todas as semanas.

Um lugarejo, como milhares de outros espalhados pelo Brasil afora. Todos conseguem seu sustento com a venda de peixes e de cocos, informalmente. Pela lei, são todos considerados desempregados, e portanto, beneficiários de seguros sociais federais, como bolsa família ou bolsa desemprego.

De olho no potencial da população, a Igreja Universal abriu seu templo numa casa da única praça do local. A população aderiu em peso à sedução da palavra e ao poder de manipulação do pastor Melquiades Coromacho. As sessões lotavam o salão principal, em três horários diários: manhã, tarde e noite.

Também de olho no aumento do poder aquisitivo dos pescadores e coletadores de cocos, dona Tereza Cavalcante iniciou um aumento no seu pequeno cabaré, que ficava justamente ao lado da igreja,onde funcionava há alguns anos.

Zeloso na pregação de sua fé, o pastor Coromacho iniciou uma campanha para que o aumento não fosse feito. A campanha do pastor constava de sessões de orações na igreja entremeadas com longos sermões que previam a destruição do estabelecimento de dona Tereza, se ela insistisse no aumento.

— Esse pastor não sabe com quem está mexendo. Vou mandar fazer um despacho prá ele. — prometeu dona Tereza.

E prosseguiu a ampliação, construindo mais até do que projetado inicialmente. A promessa da macumba só ficou mesmo em ameaça.

Porém, uma semana antes da reinauguração do novo cabaré, um raio atingiu o edifício, queimando as instalações elétricas e provocando um incêndio que destruiu a construção.

No dia seguinte ao incêndio, o pastor Coromacho exaltou-se na pregação aos fieis:

— Irmãos, eis a mostra do poder divino. E tudo graças ao grande poder das nossas orações. Graças às nossas preces, a morada de Satanás foi destruída!

E continuou por aí afora, num sermão de mais de hora e meia.

Dona Tereza, que não é nada boba, processou a igreja, o pastor e toda a congregação, com o fundamento de que eles "foram os responsáveis pelo fim de seu prédio e de seu negócio, utilizando-se da intervenção divina, direta ou indireta e das ações ou meios”.

Mas a igreja, através do advogado, em resposta à ação iniciada por dona Tereza, negou com veemência “toda e qualquer responsabilidade ou qualquer ligação com o fim do edifício”, conforme consta dos autos.

O juiz que estudou o processo exarou uma sentença que foi precedida de sabia ponderação sobre o poder das palavras.

- Todos sabemos que uma palavra dita é o início de um processo. A palavra tanto serve para elogiar, orar, pedir, como é poderoso instrumento para amaldiçoar ou destruir. Uma palavra, por pequena que seja, leva consigo um poder incalculável. A oração de muitas pessoas pode construir mais que muitos construtores trabalhando juntos. Mas pode também destruir mais do que um batalhão de soldados, com seus tanques e canhões. Portanto, devemos ter cuidado com o que dizemos, com nossas orações. E quanto às longas pregações religiosas, devo lembrar que os primeiros cinco minutos são palavra de Deus, os seguintes cinco minutos são palavras dos homens, e o que passar de 10 minutos, é palavra de Satanás.

E neste processo temos uma situação muito interessante: uma proprietária de um cabaré que firmemente acredita no poder das orações e uma igreja inteira declarando que as orações não valem nada!

E condenou a Igreja a reconstruir o cabaré.

O que acabou sobrando para os fiéis, que foram “convocados” a dar mais donativos para a reconstrução da casa que o pastor chamava de “a morada de Satanás”.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 7 maio de 2013

Conto # 781 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/04/2015
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