No limiar da imaginação (abril de 2015)

O espelho grande do banheiro rachado ao meio, o sabonete jogado debaixo da pia. No chão estavam a escova de dentes, a pasta e um pente de cor laranja – espalhados displicentemente dentro do box. Um líquido leitoso cobria os objetos, que pelo cheiro só poderia ser xampu com condicionador. E os recipientes desses dois últimos estavam vazios, dentro do vaso sanitário.

Ele saiu do banheiro e, escorado pelas paredes, chegou à copa da casa. Debruçou-se sobre a mesa posta, sobre as frutas arrumadas cuidadosamente por alguém na noite anterior. Sobre a mesa estavam intocados um peru assado e uma travessa de arroz à grega. Perguntou-se quem teria arrumado aquela mesa, cozinhado aqueles alimentos, mas não se lembrava.

Atravessou a copa e chegou à sala de tevê. As almofadas caídas dos assentos encontravam-se todas espalhadas pelo chão. Procurou por copos de bebidas, que pudessem indicar a presença dos convidados na noite anterior, mas encontrou apenas uma taça cheia até a metade de vinho branco seco. Neste ponto, decidiu sentar-se um pouco. Sentia muita dor de cabeça.

“Fernando...? Fernando...?” Deu por si se interpelando na imaginação. Nunca lhe causou estranhamento essa imaginação que o cutucava por trás. Estava mais que acostumado a falar consigo mesmo, mas entendeu que este gesto em especial era de excessiva autocomiseração: ele aceitava que falasse consigo mesmo porque sentia pena de si diante da solidão que sentia.

Teve vontade de chorar, mas não o fez porque sentiu graça no fato de ignorar o motivo para cair em pranto. Ignorava o motivo por que chorar, ignorava que a solidão que sentia era motivo para demonstrar emoção, e ignorava a razão de sua casa encontrar-se naquele estado – como se um grupo de pessoas a cavalo houvessem passado por ali.

Olhou para o chão e para os pés descalços, meticulosamente, movendo-se em busca de algum caco de vidro. Fernando estava descalço e nu – coberto apenas por um roupão que o cobria desde os ombros até a altura dos joelhos. Recolheu a taça de cristal com o vinho branco de cima da mesa e rumou para a cozinha. Chegando lá, encontrou outra bagunça inesperada.

A geladeira da cozinha estava semiaberta, com um banco de madeira ancorado na porta, o que impedia que ela se fechasse. Por este motivo, muito gelo do congelador derretia e inundava o chão. Com todo o cuidado para não escorregar e cair, Fernando pisou atenciosamente o chão molhado até a pia; onde deixou a taça.

Tomou um susto ao se deparar com uma mancha vermelha no mármore da pia, e esfregou o dedo por cima para descobrir o que era. A mancha cor de sangue parecia mesmo ser sangue. Estava seca e totalmente grudada ao mármore. Pôs-se a observar meticulosamente todo o corpo em busca de algum ferimento, mas não encontrou nenhum.

“Verônica...” Balbuciou. A marca de sangue fez com que se lembrasse do rosto alegre de Verônica, a bela namorada. Não cogitou que pudesse ter lhe retirado o sangue, assim como por violência. Mas, não sabia explicar, aquele era mesmo o sangue era de Verônica. Teve uma certeza vinda lá do fundo que afirmava, sem enganos: Verônica estivera ali na noite passada.

Fernando e Verônica discutiam frequentemente acerca dos excessos dele na bebida. Sempre que bebia muito, segundo ela, Fernando tornava-se um ser humano difícil de lidar. Ele bebia e queria ficar quieto, apático, assistindo televisão. Ou então o contrário, se tornava um pé de valsa cômico – querendo dançar com Verônica tango e valsa – o que a desagradava profundamente.

Um arrepio subiu-lhe dos pés até a cabeça, ao lembrar-se do sangue e lembrar-se de Verônica. O que teria acontecido na noite anterior, afinal? Certamente teriam discutido, mas onde estaria Verônica para esclarecer o acontecido? E toda a bagunça, o espelho quebrado... não, não teria agido com violência para com Verônica. O sangue na cozinha teria uma explicação.

O que teria acontecido para o espelho do banheiro quebrar? E quem o teria quebrado? Era profunda a amnésia que tomava conta de Fernando: não fazia ideia das razões por que esvaziaram (e quem?) o xampu e o condicionador encima dos objetos no chão; e não tinha nenhuma ideia do porquê do banquete intocado, arrumado sobre a mesa da copa.

Retornando à sala de tevê encontrou, como se escondido na borda do tapete de centro, uma caixa quebrada de cds – suja de sangue. Aí, uma luzinha acendeu na cabeça de Fernando: eis a origem do sangue da cozinha, consequência possível de um mal-uso da caixinha de cds, a qual concorrera para um corte na mão. “Verônica feriu-se na caixinha.” Cogitou Fernando.

Olhou no relógio de parede e viu que marcava nove horas e cinquenta minutos da manhã. Fernando começava a notar o dia ensolarado que entrava na casa toda, por todas as janelas do prédio. As árvores imensas do jardim balançavam junto com uma brisa suave, melódica; e foi aí que mirou o telefone, se atirando sobre ele. Como seria bom falar com Verônica...

Ligou para ela uma vez e mais outra, mas apesar de muita expectativa ninguém atendeu ao telefone. “Com certeza está dormindo.” Pensou, e continuou: “Ou então não quer mesmo falar comigo, marrenta que é quando o assunto é bebida.” “Na noite anterior, Verônica fez cara feia e voltou para sua casa.” E terminou por sussurrar, para si mesmo, “Fernando...? Fernando...?”

Muitas vezes Verônica retornara de taxi de madrugada para sua própria casa. Quando entrava em jogo a bebida, preferia ir dormir em sua casa a ter que brigar com Fernando. As discussões desgastavam o relacionamento, trazendo à tona muita culpa e dor. Verônica se esquivava para não ameaçar Fernando com o término da relação. Ela sabia que ele não suportaria perdê-la.

Mais tarde, ele voltaria a telefonar para Verônica. Agora, para aproveitar a bela manhã de sábado, atirou para o lado o roupão e pôs-se em trajes de banho. Para curar a ressaca, nada como a caminhada pelo calçadão da praia e um merecido mergulho nas águas do mar. Calçou um chinelo, e saiu. Trancou a porta da frente, o portão, e caminhou rua abaixo.

Na casa ao lado, alguém parecia cantar para um nenê, “... boi da cara preta... pega este menino que tem medo de careta...” No quintal, debaixo de uma árvore, pendia para o lado de fora da terra preta um pedaço de tecido de vestido de mulher. Alguns palmos abaixo jazia o corpo de Verônica, brutalmente estrangulada e esfaqueada por seu namorado Fernando.