Paixão Demais.
Inteligente, simpático, espirituoso ao extremo, aquele colega era, ao mesmo tempo, o representante da feiúra humana na Terra. Além do nariz imenso, da magreza extrema, da pele do rosto parecer um saco de aniagem de tantas rugas e irregularidades, havia, ainda por cima, sido vitimado por paralisia infantil e andava com muita dificuldade, movimentando todo o corpo a cada passo que dava. Mas todos nós, os colegas, vendedores, gostávamos muito dele e admirávamos sua verve, sua capacidade de ver os ângulos bons da vida, de fazer auto gozações e gozações perspicazes com os amigos. Nós dois nos dávamos muito bem e gostávamos de trabalhar em dupla.
Um dia fizemos uma produção extraordinária de vendas. Vendemos em apenas um dia o que costumávamos levar quase uma semana para conseguir, e resolvemos comemorar pra valer.
- Vamos lá, Fernandão. Vamos comemorar na zona boêmia. Vamos comemorar com as “primas”, meu amigo.
- Zona boêmia, meu chapa? Isso lá é lugar de comemorar alguma coisa? Ainda mais nesse interior bravo...Vai ver, só tem bagulhão de quinta categoria. Não topo. Vamos dar uma paquerada pela cidade e ver se conseguimos duas gatas livres.
- E você acha que eu consigo, Fernando? Com essa cara que eu tenho e essa perna que Deus mandou secar? Meu amigo, a verdade verdadeira é que a zona boêmia é o único lugar onde eu consigo atenção de verdade. E mesmo assim se tiver grana viva no bolso. Se não, meu caro amigo, nem mesmo lá.
- Bobagem sua, Felipão. Você é simpático, sabe conversar e convencer, sabe levar um bom papo. Acho que o que te falta mesmo é autoconfiança. Vamos paquerar juntos pra você treinar.
- Já treinei muito, Fernando. Muito mesmo. E só o que ganhei foi quebrar a cara, passar vexame, ficar envergonhado com os foras que levo. Na zona não. Na zona eu chego, escolho uma, levo um lero, combino o preço e tudo bem.
- Não quer mesmo dar umas voltas e fazer pelo menos uma tentativa?
- Tentativa de que? De que você consiga uma mulher pra mim? Você acha que isso me faz bem? Vamos, cara, vamos pra zona e chega de papo.
Fomos.
Mal entramos na zona boêmia e uma linda morena debruçada em uma das muitas janelas chamou nossa atenção.
- Fernando, olha só que mulher linda, cara!! Como é que pode uma coisa linda daquelas nessa zona de merda? É impressionante, cara!!
Realmente, sem exagero alguma da parte dele, e exagero algum de minha parte agora, a moça era lindíssima e vendia seu corpo, a preço baixo, em um puteiro vagabundo. De décima categoria. Era como encontrar um belo diamante em cima de um monte de fezes.
- Fernando, pelo amor de Deus, nem chegue perto dela. Você pode conseguir a mulher que quiser, mas essa você vai deixar pra mim.
- Vai lá, Felipe. Vai lá e seja feliz. Mas quanto a conseguir a mulher que quiser, é puro exagero de retórica de sua parte.
Ele foi e considerou-se o mais feliz dos homens daquele dia em diante. Quando saiu do quarto dela, talvez uma hora depois de haver entrado, veio para perto de mim cheio de novidades:
- Meu amigo, você não vai acreditar, mas conquistei de vez a mulher de minha vida!! Um amor pra toda vida, cara!! Ela está doida comigo e eu com ela. Conversamos muito e chegamos à conclusão de que fomos feitos um para o outro. Até já combinamos tudo.
- Tudo o quê, cara? Você a conhece há menos de uma hora.
- Você não acredita em amor à primeira vista?
- Até acredito, mas não na zona boêmia, e com uma prostituta que você acabou de conhecer.
- E daí? Ela jurou que vai deixar dessa vida e que será a melhor esposa do mundo, meu amigo. E eu só tenho motivos para acreditar nela, cara.
- É...Pensando bem, ela nunca te mentiu antes. Antes de você conhecê-la.
- Fernando, eu não quero ser grosseiro contigo, que é meu amigo, mas estou decidido a não dar satisfações nem ouvidos a ninguém. Nem à minha mãe, se quer saber. Daqui a pouco eu vou pegar um ônibus pra São Paulo e de lá eu volto com meu carro pra levar a mudança dela. Vou fazer isso com a certeza de que encontrei a mulher de minha vida, meu amigo. Vai me desejar felicidade?
- Claro, meu chapa. Sua infelicidade é que eu não desejaria nunca.
Alguns dias depois meu amigo era outra pessoa. De risonho, gozador, brincalhão, um tanto quanto palhaço, passara a ser um homem sério, batalhador, organizado, metódico no trabalho, e cheio de correrias pra todo lado atrás de dinheiro.
De vez em quando parava-me no corredor da empresa, pegava-me pelos ombros e dizia rapidamente:
- Meu amigo, que vida que eu estou levando!! Que maravilha a vida de casado! Você nem pode imaginar o quanto é bom chegar em casa e encontrar o seu amor à sua espera. Encontrar a casa cheirosa, arrumada, a comida em cima da mesa, a mulherzinha linda de banho tomado e à sua espera. É o paraíso, meu amigo, é o paraíso. É o paraíso, cara! Tchauuuu..
Eu também o apertava pelos ombros, declinava meus votos de que sempre fosse muito feliz, e dizia estar chateado por não trabalharmos mais em dupla.
- Agora, meu caro, eu tenho que pensar apenas em mim e nela. No meu amor. Tenho que faturar muito pra nós dois. E, se Deus quiser, para três dentro de algum tempo.
E lá se ia ele, feliz da vida, sem perceber que trabalhando sozinho ganhava menos do que quando percorríamos as cidades do interior de São Paulo e de muitos outros estados. O importante era que se sentia feliz e realizado. Fazia-me falta apenas sua companhia divertida e sempre alegre de antes. Mas torcia sinceramente que fosse feliz com a moça que tirara de um prostíbulo vagabundo e a quem oferecera uma chance de uma vida digna e cheia de amor.
Alguns meses depois meu amigo Felipe veio contar-me, felicíssimo, que a esposa – era assim que ele a designava- resolvera estudar Direito. Cismara de fazer faculdade, mas só conseguira passar no vestibular da Faculdade de Pouso Alegre, a cento e oitenta quilômetros de São Paulo, sem contar o percurso interno.
- Faculdade de fim-de-semana, Fernando, mas é melhor que nada. O importante é que realize o sonho dela, não é mesmo?
- Bacana, meu amigo. Quer dizer que daqui a alguns anos você será marido de uma doutora?
- Já pensou, cara? O que ela era e o que ela será. Só posso ter orgulho. Muito orgulho. E justificado. Você é a única pessoa no mundo que sabe de onde a tirei. Já pensou a maravilha que será na minha vida o dia em que ela se diplomar? Acho até que passarei mal de tanta emoção. Acho que me sentirei como o pai pobre que consegue tornar a filha uma doutora. Com muito sacrifício.
- Mas você está ganhando bem. Não será tanto sacrifício assim.
- E ficar sem ela nos fins de semana, não conta como sacrifício?
- Nesse caso...
- Ela já contratou as viagens com o ônibus que leva uma turma toda sexta-feira à noite e traz de volta no domingo à noite. Eu só terei que esperá-la onde ela descerá do ônibus.
- Boa sorte para os dois, então.
Passados mais alguns meses, levei um choque ao ouvir de um colega a frase:
- Você já soube que o Felipe matou a mulher e depois deu um tiro na cabeça?
- Não brinca!! Como é que foi isso?
- Ele resolveu buscá-la na faculdade, de surpresa, e quando chegou lá as aulas já haviam terminado. Aí ele foi atrás dela de hotel em hotel e acabou indo parar em uma fila de homens na porta de um quarto. A vagabunda da mulher dele ia à faculdade só pra faturar uma porrada de michês nos finais de semana. Me contaram que ele entrou na fila, entrou, estrangulou a “esposa”, correu para o carro, pegou a arma e deu um tiro na cabeça. Um cara tão legal...Não merecia isso.
- Não merecia mesmo. Pelo que ele deu a ela, não merecia mesmo, coitado.
- Ele gostava de contar que a conheceu virgem, que a tirou de um colégio de freiras, e que a família dela o odiava por isso. A família queria que ela se casasse com um ricaço amigo deles, mas ela preferiu se casar com ele.
- Isso é verdade. Disso eu sou testemunha. Aliás, a única testemunha. A família dela sempre o acusou de tê-la desencaminhado. Ela não resistiu ao papo dele.
- Mulheres...Quem é que vai entender uma mulher? Eu gostava muito do Felipão, mas cá pra nós, além de feio demais, o coitado ainda tinha aquele passo “deixa que eu chuto”. E depois a mulher ainda vira puta, cara. Dá pra entender?
- De jeito nenhum. E o mais estranho é que elas não resistiam às cantadas dele.
- Vá entender...
Essa mentira ao colega foi a maneira que encontrei de homenagear meu falecido amigo.